Considerações sobre a crise do sentido das universidades sob a gestão neoliberal

 

Considerations on the crisis of the meaning of universities under neoliberal management

 

Consideraciones sobre la crisis del sentido de las universidades bajo gestión neoliberal

 

 

Recibido: 11/10/2023

Aprobado: 27/12/2023

Este artículo ha sido aprobado por la editora, Dra. Susana Graciela Pérez Barrera

 

Ana Furlong Antochevis[1]

Carlos Roberto da Silva Machado[2]

 

Resumo

 

Este artigo apresenta considerações críticas sobre a assunção de formas de gestão universitária alinhadas às premissas neoliberais, no contexto das Universidades federais brasileiras. Os processos de implantação (no período colonial), expansão (nos anos 1920 enquanto faculdades e depois Universidades nos anos 1930) e recuperação universitária (nos anos 2000) têm sido impactados pelo desenvolvimento político, social e econômico do País, marcando profundamente os sentidos e propósitos do Ensino Superior. Amparados na concepção de que o contexto universitário brasileiro tem sofrido o impacto do modelo de desenvolvimento nacional a partir do capitalismo dependente, consideramos também a base de constituição de classes sociais no Brasil e abordamos de que forma o acesso à Universidade influencia a conformação social nestes termos. Desta forma, apresentamos considerações a respeito da transformação do sentido de existências das Universidades - de social a tecnocrático -, refletindo sobre o impacto da absorção, pelas gestões universitárias, das prerrogativas de gestão neoliberal, a partir da apresentação de exemplos sobre essa questão em relação a políticas relacionadas ao cotidiano das Universidades, buscando contemplar políticas de planejamento e execução de nível tanto nacional como local. Para essa nossa análise foi utilizado o método de Revisão Narrativa. Concluímos criticamente, nesse sentido, sobre como a gestão universitária, através da assunção de prerrogativas neoliberais, tem sido palco de avanços do seu controle hegemônico pelos setores dominantes da elite brasileira, fenômeno que insta para a urgência da ampliação e aprofundamento de estudos e debates sobre o tema.

 

Palavras-chave: Universidade; crise institucional; gestão neoliberal.

 

Abstract

 

This article presents critical considerations on the assumption of forms of university management aligned with neoliberal premises, in the context of Brazilian federal universities. The processes of implementation (in the colonial period), expansion (in the 1920s as colleges and then Universities in the 1930s) and university recovery (in the 2000s) have been impacted by the country's political, social and economic development, deeply marking the meanings and purposes of Higher Education. Supported by the conception that the Brazilian university context has suffered the impact of the national development model based on dependent capitalism, we also consider the basis for the constitution of social classes in Brazil and address how access to the University influences social conformation in these terms. In this way, we present considerations regarding the transformation of the meaning of existence of Universities - from social to technocratic -, reflecting on the impact of the absorption, by university management, of neoliberal management prerogatives, based on the presentation of examples on this issue in relation to to policies related to the daily life of Universities, seeking to include planning and execution policies at both national and local levels. For our analysis, the Narrative Review method was used. We conclude critically, in this sense, on how university management, through the assumption of neoliberal prerogatives, has been the stage for advances in its hegemonic control by the dominant sectors of the Brazilian elite, a phenomenon that urges the urgency of expanding and deepening studies and debates on the theme.

 

Keywords: University; institutional crisis; neoliberal management.

 

 

Resumen

 

Este artículo presenta consideraciones críticas sobre la asunción de formas de gestión universitaria alineadas a las premisas neoliberales, en el contexto de las Universidades federales brasileñas. Los procesos de implantación (en el período colonial), expansión (en los años 1920 como facultades y después Universidades en los años 1930) y recuperación universitaria (en los años 2000) han sido impactados por el desarrollo político, social y económico del País, marcando profundamente los sentidos y propósitos de la Enseñanza Superior. Amparados en la concepción de que el contexto universitario brasileño ha sufrido el impacto del modelo de desarrollo nacional a partir del capitalismo dependiente, consideramos también la base de constitución de clases sociales en Brasil y abordamos de qué forma el acceso a la Universidad influencia la conformación social en estos términos. De esta forma, presentamos consideraciones acerca de la transformación del sentido de existencias de las Universidades - de social a tecnocrático -, reflexionando sobre el impacto de la absorción, por las gestiones universitarias, de las prerrogativas de gestión neoliberal, a partir de la presentación de ejemplos sobre esa cuestión en relación a políticas relacionadas al cotidiano de las Universidades, buscando contemplar políticas de planificación y ejecución de nivel tanto nacional como local. Para ese análisis nuestro se utilizó el método de Revisión Narrativa. Concluimos críticamente, en ese sentido, sobre cómo la gestión universitaria, a través de la asunción de prerrogativas neoliberales, ha sido escenario de avances de su control hegemónico por los sectores dominantes de la élite brasileña, fenómeno que insta a la urgencia de la ampliación y profundización de estudios y debates sobre el tema.

 

Palabras clave: Universidad; crisis institucional; gestión neoliberal.

 

 

Introdução

 

A universidade pública, no Brasil, é uma instituição que tem pasado por alterações em suas formas de funcionamento ao longo dos anos, especialmente em relação ao seu sentido social – o que provoca mudanças tanto nas suas rotinas e procedimentos internos, em diferentes níveis e dimensões relacionas. Entretanto, a forma como as universidades federais estabelecem suas políticas nacionais ou locais não apenas representa a racionalidade do período histórico em que estão se desenvolvendo, mas pode ser uma forma tanto de reforçar uma racionalidade como também de contestar essa racionalidade, a partir de qual seja seu sentido enquanto instituição social.

Essa análise pode ser identificada quando entendemos que, enquanto instituição clássica de origens europeias, a universidade teve início no Brasil reproduzindo e aprofundando, por exemplo, a lógica patrimonialista em relação à composição do corpo de trabalhadores, e uma lógica elitista em relação ao acesso de estudantes. Em relação ao corpo funcional, ainda que de 1930 a 1945 tenha ocorrido um grande movimento para definir o acesso a cargos federais através de concursos públicos, o período seguinte, especialmente na ditadura empresarial-militar, foi de rechaço a essa perspectiva, com a retomada de contratações por indicações - funcionamento que foi interrompido após 1988, com a instituição da exigência de concursos públicos (Maia, 2021).  

Em relação ao acesso de estudantes, essa reflexão fica evidenciada pelo Censo do Ensino Superior de 2021, que demonstra o caráter elitista e restrito de acesso até os anos 1990 - período no qual não chega a 10% o número de jovens que ingressavam na Universidade - e mesmo nos governos progressistas, nos quais esse índice não chega a 20% (Censo da Educação Superior 2021: notas estatísticas, 2022). A lógica elitista em relação ao acesso de estudantes é evidenciada na medida em que se confronta a realidade de que dedicar-se aos estudos universitarios é uma tarefa que demanda tempo e condições financeiras para acesso a materialidade dos elementos necessários ao proceso educativo, desde os custos de deslocamento e alimentação até os custos de aquisição de livros e mateiriais didáticos.

A partir dessas compreensões, podemos inferir que a Universidade possui um sentido social de existência, que tem se transformado ao longo dos anos, em associação com as transformações ocorridas no amplo da sociedade. Portanto, nosso objetivo nesse artigo é apresentar uma compreensão de como, na atualidade, a Universidade brasileira está em um momento de crise de sentido. Essa crise é complexa e decorrente de processos históricos que afetam e constituem a forma como as políticas e o cotidiano das Universidades se materializam mas ainda assim, o elemento central desta crise, o capitalismo e a lógica neoliberal que o sustenta na atualidade, seguem sendo estruturantes nas formas como diversas políticas (em diferentes níveis institucionais) tem sido implantadas e desenvolvidas nas IFES.

A metodologia utilizada para o desenvolvimento dessa reflexão foi a Revisão Narrativa, modalidade de revisão bibliográfica que alinha-se mais à fundamentação de uma discussão qualificada sobre o tema proposto, do que à produção quantitativa de informações sobre a produção científica na área abordada (Rother, 2007). Para tanto apresentamos a concepção de capitalismo dependente a partir da formulação de Florestán Fernandes como a forma de desenvolvimento político e econômico que ocorre no Brasil, e de que forma essa concepção afeta o desenvolvimento do papel das Universidades no desenvolvimento nacional. Com isto, apresentaremos o percurso histórico da implantação das prerrogativas liberais e neoliberais no Ensino Superior, e analisaremos três produções acadêmicas atuais (duas teses e uma dissertação) que demonstram como o debate proposto tem se materializado no cotidiano das Universidades brasieiras.

Através dessa análise crítica pretedemos provocar uma necessária reflexão, no amplo da sociedade, mas especialmente das gestões universitárias, a respeito dos impactos da assunção da racionalidade neoliberal que tem ocorrido, de maneira mais ou menos explícita, no desenvolver do cotidiano e dos rumos das Universidades federais brasileiras. Ainda que não haja uma assunção declarada da racionalidade neoliberal na gestão universitária, evidenciamos como esta forma de compreender o funcionamento institucional tem sido estruturante no desenvolvimento de importantes políticas relacionadas à vida universitária. Assim, utilizando as formas narrativas e operacionais que utilizam-se de lógicas meritocráticas, tecnocráticas, não-democráticas e alinhadas mais aos intereses empresariais do que aos intereses populares, mesmo que não declarem a assunção da racionalidade neoliberal, as gestões universitárias garantem a sua implantação sem debate com o amplo da comunidade acadêmica, silenciando sobre a adoção de uma nova missão institucional, cada vez mais afastada do interesse popular e democrático.

 

A universidade brasileira em crise - entre o desenvolvimento nacional e a racionalidade neoliberal

 

A universidade, enquanto instituição, é formada em relação dialética com as transformações sociais. Sendo assim, uma análise crítica de sua dinámica demanda a sua contextualização social e histórica, especialmente em relação às perspectivas de desenvolvimento social, político e económico da sociedade na qual se constitui.

No caso das universidades brasileiras, o contexto económico e social em que estas instituições se desenvolvem é o do capitalismo. Entretanto, ainda que suas bases tenham sido fundamentadas por Karl Marx, o funcionamento desse sistema económico e social tem se transformado ao longo dos anos, e tais transformações tem sido estudadas por campos marxistas de correntes que dão atenção a distintas particularidades da complexidade desse tema.

Nesse sentido, cabe atentar que a dimensão global do capitalismo como sistema hegemónico é um fator fundamental para a sua manutenção, na medida em que tal sistema sustenta-se a partir de processos de exploração que podem ser efetivados através da garantía de que haja desigualdades entre o desenvolvimento económico e político das nações nas quais se localizam os capitalistas operadores da exploração, e aquele das nações nas quais se localizam os recursos e relações humanas e com a natureza a serem explorados.

Para essa análise, recorremos à compreensão formulada por Florestan Fernandes acerca do desenvolvimento brasileiro no contexto do “capitalismo dependente” (Fernandes, 1975a). Para este autor, o Brasil possui um histórico de desenvolvimento político, econômico e estatal que tem servido de base para a exploração do capital internacional. Esse fenômeno ocorre na medida em que as clases burguesas brasileiras, ao invés de identificarem-se com um sentimento e um compromisso de desenvolvimento nacional com foco na redução das desigualdades sociais, identifica-se com os representantes da burguesía internacional - e seu foco, a partir daí, passa a ser a exploração da clase trabalhadora brasileira de forma a garantir a manutenção do status de poder global hegemónico aos detentores e aos operadores do capital internacional.

Tal dinámica informa sobre umsubdesenvolvimento” no Brasil, que não é apenas resultado de desigualdades sociais, mas que é fruto de um planejamento estratégico para a sua manutenção como um País produtor de commodities, sem o incentivo ao desenvolvimento industrial e tecnológico, que fica designado aos países reconhecidos como “desenvolvidos”.

Esse processo, segundo Fernandes (1975a, p.49), ocorre através da garantía de que hajam diferentes estágios de desenvolvimento económico no mundo, e de que essa diferenciação seja coordenada de forma a fornecer mão-de-obra extrativista de baixo custo e, assim, insumos baratos para envio à outras nações de industrialização desenvolvida. Além disso, a necessidade de manutenção, nos países explorados dentro da lógica do capitalismo dependente, de uma diferenciação no nível de desenvolvimento dos próprios setores econômicos internos. Nesse caso, o desenvolvimento da economía nacional oscila, à partir de movimentos econômicos que atendem às necesidades de exploração pautadas pelos países dominantes. Assim, ainda que hajam procesos de modernização na indústria e na economía, o ritmo de seu desenvolvimento – e eventuais interrupções nesse proceso – serão determinados pelo interesse internacionalista.

Para que tal processo se sustente é necessário, para Fernandes (1975, p.58), que a classe burguesa atue políticamente no sentido de proteger a manutenção de setores arcaicos da economía (mais associados aos processos mais agressivos de exploração do trabalho), e de produzir e sustentar uma formação cultural que opere ideológicamente na defesa da diferenciação e do distanciamento entre as clases sociais. Nesse sentido, o regime de clases no Brasil pode ser compreendido não apenas como resultado da desigualdade produzida pelo histórico de exploração colonialista, mas como uma das características necessárias e sustentadas pelo poder económico internacional para efetivar a exploração no modelo de capitalismo dependente.

Nesse contexto do capitalismo dependente no Brasil, Fernandes faz também a análise do desenvolvimento da educação e, particularmente, do Ensino Superior no País (Fernandes, 1975b). Para o autor, a Universidade brasileira emerge de uma perspectiva de manutenção de distanciamento entre clases sociais, e não com a tarefa de ser espaço de transformação social com vistas ao combate à desigualdade. Serão, desde o período colonial, importados modelos europeus de ensino superior baseados em relações de modelo hierárquico reacionário, tanto no que diz respeito às relações interpessoais entre os atores do ambiente universitário, bem como na constituição da própria noção de quais saberes são valorizados e considerados científicos ou não. Essa dinámica produziu um sentido de existência e função social da Universidade brasileira que tem menos a ver com o desenvolvimento nacional, e mais com o desenvolvimento pessoal dos representantes das clases burguesas que conseguem acessar e concluir os estudos universitários (Fernandes, 1975b, p. 103).

Essa conformação atua na lógica do capitalismo dependente, portando, no sentido de controlar o desenvolvimento da produção de conhecimento, e de controlar o direcionamento dessa produção. Desta forma, ao mesmo tempo em que se atende às necesidades de introdução de aspectos de modernização na economía nacional, não se ultrapassam os limites de desenvolvimento que são definidos de acordo com os intereses do capital internacional.

Podemos compreender, portanto, como no contexto do capitalismo dependente as Universidades apresentam-se como instituições de imenso valor estratégico na constituição de um controle sobre não apenas o tipo de conhecimento que produz. Na lógica do capitalismo dependente, as Universidades são espaços provilegiados nos quais a racionalidade que sustenta a ideologia fundante do capitalismo, atualmente identificada como neoliberalismo, pode se desenvolver, estruturar e determinar a forma como o conhecimento é produzido, como ele é apresentado à sociedade e em qual sentido social ele será utilizado. Nesse caso, evidentemente, a produção será pautada nas lógicas de produtivismo, a apresentação será identificada de acordó com a lógica do empreendedorismo, e o sentido social será o da meritocracia.

De acordo com Dardot e Laval (2016), o neoliberalismo pode ser conceitualizado não apenas como uma doutrina econômica, política ou mesmo como uma ideologia, mas como uma racionalidade. Assim, sua capacidade de interferência na vida cotidiana perpassa a a conformação de uma forma de compreensão e de ação sobre a vida e o mundo, que passa a ser assumida como uma lógica viável por toda a sociedade. Para os autores, na medida em que a racionalidade neoliberal é um sistema normativo, capaz de ampliar a lógica capitalista para além da esfera económica, atingindo e conformando as demais dimensões de relações sociais que são atravessadas pela economía (Dardot e Laval, 2016, p. 7).   

O impacto da utilização dessa racionalidade na gestão pública pode ser percebido na análise das trasformações ocorridas nas Universidades brasileiras nas últimas décadas. Se inicialmente a Universidade surge no Brasil como forma de qualificar mão-de-obra no interesse da burguesia colonial, os rumos de seu sentido institucional passaram por alterações que respondiam ao resultado de disputas políticas pelo controle do poder estatal. Assim, tendo como pano de fundo o poder coercitivo da conformação do capitalismo dependente, as transformações pelas quais tem passado a Universidade brasileira são mais relacionadas a quem eram os representantes da elite que determinava seus rumos, do que exatamente mudanças no seu rumo em si.

Por exemplo, ainda que durante a ditadura empresarial-militar no Brasil tenha ocorrido uma ampliação quantitativa das vagas universitárias, esse aumento foi insignificante em relação às necessidades materiais de desenvolvimento do País, e atendia muito mais a um plano de desenvolvimento nacional tutelado pelas elites estadunidenses financiadoras daquele período de truculência estatal. E se houve aumento de vagas nesse período, houve também acirramento dos aspectos mais reacionários e intransigentes em relação ao panorama pedagógico do Ensino Superior, perspectiva alinhada ao ideário conservador e positivista, que não possui compromisso com a criatividade, o diálogo e o desenvolvimento de saberes pautados em parámetros éticos de relações entre os seres humanos.

O período imediatamente posterior à redemocratização, ainda que tivesse a marca da vitória da democracia, foi de intenso ataque, por parte do governo federal, à todas as dimensões de autonomía que as Universidades reivindicavam desde o periodo da ditadura (Chauí, 1990). Não apenas pelo fato de que as Universidades haviam sido um campo profícuo de formação de resistência e formulação de consciência democrática, mas também porque fazia parte do projeto neoliberal a privatização do Ensino Superior no Brasil.

Assim, a década de 1990 foi cenário de um processo devastador de precarização do campo universitário federal, tanto nas dimensões de infraestrutura, como de pessoal, de dinámicas de funcionamento internas (incapacidade de implantação de processos democráticos para escolha de representantes, acirramentos das relações de violencia e assédio moral) e de valor social. Nesse cenário, a universidade deixa de ser compreendida como umainstituiçãocom comprimisso que remete à soberanía nacional e o fim das desiguadaldes sociais, para passar a ser compreendida como umorganização”, na qual operam os sentidos funcionalistas associados às demandas e formas de atuação do mercado (Chauí, 2003).

 

A implantação da gestão neoliberal e a crise de sentido das Universidades

 

Após o ingresso dos governos progresistas, a partir de 2003, foram feitos importantes esforços no sentido da reestruturação das dimensões de infraestrutura e pessoal através do REUNI (Decreto 6.096, 2007), bem como no sentido da democratização do acesso através da Lei de Cotas (Lei 12.711, 2012), e da garantia de permanência qualificada aos estudantes oriundos de situações de vulnerabilidade socioeconómica, com o Programa Nacional de Assistência Estudantil - PNAES (Decreto 7.234, 2010). Contudo, tais medidas foram desenvolvidas lado a lado com uma política majoritária de financiamento público de vagas em universidades particulares. Portanto, ainda que à primeira vista estivessem sendo feitos vultuosos investimentos no Ensino Superior público, a grande forma de acesso a este grau de instrução tem sido o Ensino Superior privado – ainda que às custas de investimentos federais. 

Este cenário sobre o Ensino Superior demonstra como a racionalidade neoliberal está implantada na gestão pública federal, não apenas no que diz respeito à questão do uso de verba pública para financiar vagas em instituições privadas, mas no sentido de que essa política está alinhada a uma concepção de Acesso ao Ensino Superior como um divisor de clases, segundo Pochmann (2014). Na perspectiva desse autor, as clases brasileiras privilegiadas têm usado o acesso ao Ensino Superior público de uma forma mais usual do que as famílias de classes com menores recursos financeiros, as quais acabam por serem levadas ao Ensino Superior privado na busca de qualificação educacional. Essa dinámica demonstra como o acesso ao Ensino Superior ainda representa um recurso de mobilidade de classe social, de tal forma que as famílias com menor renda são aquelas que arcam com maiores custos para garantir acesso e permanencia à educação de nível superior (Pochmann, 2014, p. 112).

Essa análise condiz com a percepção de Leher (2019) a respeito do alinhamento da constituição de políticas educacionais brasileiras aos interesses de uma elite que pretende, a partir da diferenciação de acesso à educação formal (especialmente superior) entre os estratos populacionais, manter seus privilégios, o que é materializado nas propostas de difusão e conformação da opinião pública de uma lógica educacional que preconiza o ideário mercadológico (Leher, 2019, p. 36). Assim, defende o autor, a universidade se diante de um conflito em relação aos rumos de seu desenvolvimento, na medida em que seu objetivo final - a produção de ciência e tecnologia - deixa de ser orientado para a melhoria das condições de vida da população, para ser orientado pelos interesses típicos da racionalidade neoliberal: lucrativos ou belicosos, mas sempre desconectados de um compromisso ético com a preservação da vida e do meio ambiente (Leher, 2019, p.41)

As grandes mudanças institucionais que ocorreram nas universidades, segundo o autor, informam sobre conflitos e disputas de campos antagônicos - sejam as revoluções burguesas do séc. XIX em contraponto à hegemonia do saber religioso, ou as modernas lutas de movimentos estudantis e sindicais pela autonomia universitária (Leher, 2019, p 46). Assim, é possível compreender a necessidade de se avaliar criticamente o avanço contínuo nas universidades de uma perspectiva de inovação tecnológica descolada de um sentido de desenvolvimento social com vistas à redução da desigualdade

Nessa perspectiva, aponta o autor para o papel desempenhado na disputa pela implantação do Programa “Future-se”, em um proceso que se desenrolou a partir do golpe de 2016 contra Dilma Rouseff (Leher, 2021). Esse programa emerge de uma compreensão de que a Universidade pública brasileira representaría um risco aos governos conservadores que se implantavam, pois atuaria como um foco de formação de resistência política e de formação de consciencia cidadã. Em resposta a isso, a Universidade deveria constituir-se definitivamente como instrumento de manutenção da hegemonía burguesa, dentro da lógica do capitalismo dependente, operando como não mais uma instituição de função social, mas como uma organização subordinada aos intereses do capital internacional. O ataque à autonomía institucional, para Leher (2021), é um dos movimentos centrais nessa mudança, na medida em que garante a dependencia do funcionamento universitário às decisões administrativas e financeiras da gestão federal. Mas além disso, esse processo de destituição da autonomía universitária também passaria pela abertura ao acesso do financiamento privado aos setores de desenvolvimento de ciencia e tecnología.

A gestão institucional, nesse sentido, sofre graves implicações, tanto nos seus aspectos de processos internos de garantía da autonomía, como também no desafio de sustentar-se, em um panorama de precarização das relações de trabalho e desfinanciamento público das atividades de pesquisa e extensão, além dos cortes nas verbas de asistencia estudantil. Todo esse quadro mostra como a racionalidade neoliberal tem operado no sentido de ocupar espaços não apenas nos aspectos económicos e políticos, mas também no desenvolvimento de uma lógica de funcionamento universitário que dialoga cada vez mais com as premissas da lógica do capitla, tais como o empreendedorismo, a meritocracia, a violencia nas relações entre os atores da cena universitária e na relação da universidade com a sociedade.

Assim, no contexto universitário brasileiro, a racionalidade neoliberal tem sido observada em estudos que analisam diferentes aspectos do planejamento e da gestão institucional do Ensino Superior na atualidade. A sua implantação é um fenômeno que pode ser analisado a partir de diferentes perspectivas, a partir dos níveis em que essa lógica é inserida nos processos e dinâmicas do cotidiano das Universidades. Além disso, essa inserção pode ser mais ou menos explícita, mas é sempre amparada na proposição do uso de lógicas do modelo de desenvolvimento neoliberal, tais como o empreendedorismo, a meritocracia, o produtivismo, a tecnocracia, etc.

Para demonstrar essa hipótese, selecionamos alguns exemplos sobre de que forma a racionalidade neoliberal, através das lógicas descritas, tem sido implantada nas Universidades públicas brasileiras. Apresentaremos então um estudo sobre o impacto desse movimento em três dimensões de planejamento e execução de políticas da Universidade Federal. Em relação a políticas de planejamento e execução a nível nacional, apresentaremos um estudo que acompanhou o Sistema Nacional de Avaliação da Educação Superior, o SINAES. Em relação a políticas de planejamento nacional e execução a nível local, apresentaremos um estudo que aprofunda aspectos de execução do Programa Nacional de Assistência Estudantil - PNAES, e em relação a políticas de planejamento e execução desenvolvidos em nível local, apresentaremos um estudo que realizou reflexão crítica sobre o tema sustentabilidade nos processos internos de uma Universidade brasileira.

Iniciamos nossa análise a partir de um estudo que analisa uma política que tem seu planejamento e execução determinados partir do nível federal. Pereira (2020) analisou o Sistema Nacional de Avaliação do Ensino Superior – SINAES. Esse dispositivo foi desenvolvido pelo Ministério da Educação, e implantado em 2004, com o intuito de consolidar informações acerca do desempenho das IFES em diversos ámbitos, tais como desempenho académico dos universitarios, gestão de pessoas, infraestrutura, etc. Nesse sentido, três principais indicadores são utilizados pelo sistema, quais sejam, as avaliações de desempenho de universitarios, dos cursos e das instituições de Ensino Superior (Ristoff e Giolo, 2011).

Na sua análise, Pereira (2020) identifica o avanço da racionalidade neoliberal no contexto do sistema analisado a partir da verificação de uma crescente utilização de parámetros e diretrizes de avaliação cada vez mais relacionados à noção de “eficiencia”. Segundo o autor, a centralidade assumida por ese conceito, na gestão do SINAES, demonstra como a perspectiva gerencialista assumiu a hegemonía na concepção dos elementos que determinam como se dão e quais são os valores dos processos burocráticos e administrativos que fazem o cotidiano das universidades brasileiras.

Assim, a noção de umauniversidade eficiente” passa a ocupar o ideario académico e popular, sem que se faça, contudo, qualquer debate acerca do que significa “eficiencia” no contexto universitário – por exemplo, não se debate se essa eficiencia diz respeito à economía de recursos (quais e por qual motivo?), ou se diz respeito à celeridade nos processos (com ou sem algum indcador de qualidade?), etc. Sem o referido debate, o conceito de eficiencia é alçado à categoría de deteminante de qualidade nos processos burocráticos, mas também nos processos pedagógicos e interpessoais de sua comunidade. A prerrogativa de “eficiencia” passa então a representar a narrativa institucional que coaduna-se aos preceitos neoliberais, uma vez que sua aplicação é destacada de uma perspectiva democrática como fundamento da estrutura universitária.

Em relação a políticas universitárias nacionais que possuem uma exigencia de execução local, o estudo de Antochevis (2023) apresentou considerações sobre o impacto da falta de fundamentação teórica crítica sobre as categorias “Estado”, “Políticas públicas” e “Universidade” em artigos que apresentavam as formas através das quais as equipes de profissionais atuantes na Assistência Estudantil executam a política, especificamente no âmbito da saúde mental dos universitários.

O PNAES é um programa de apoio à permanencia, na universidade, de estudantes vindos de realidades vulnerabilizadas. Implantado em 2010, o Decreto 7.234 (2010) garantia um recurso de financiamento específicamente designado para a atenção às necesidades de garantía de permanencia qualificada de estudantes universitarios até a conclusão do curso. Entretanto, tal programa não propunha quaisquer parámetros ou diretrizes para sua implantação, apenas indicando algunas áreas principais a serem atendidas, tais como apoio pedagógico, alimentação, transporte e moradia estudantil, saúde integral do estudante, entre outros. Essa perspectiva, ao contrario do que acontece, por exemplo, com o SINAES e a prerrogativa da “eficiencia”, abre espaço para que cada universidade desenvolva a implantação do programa de acordo com suas próprias concepções e limites executivos.

Ao analizar a produção recente a respeito da execução do PNAES, especialmente em relação à saúde mental do universitário, a autora infere que as dificuldades encontradas pelas equipes para uma execução mais efetiva de sua missão institucional está fundada justamente na falta de reflexão por esses grupos sobre quais as perspectivas de saúde mental, sobre sua compreensão acerca do papel das políticas públicas no desenvolvimento nacional, e principalmente sobre qual  o sentido social da universidade. Essa falta de reflexão, dirá a autora, leva as gestões e as equipes executoras do programa a assumirem a lógica neoliberal, utilizando-se de parámetros burocráticos relacionados à ideia de eficiencia, meritocracia, etc. Sem crítica, as equipes acabam desenvolvendo suas atividades sem a possibilidade de perceber que essa lógica não irá dar conta de solucionar um problema que demandaria diversas dimensões de transformação social (Antochevis, p.81).

No âmbito de uma política que tem planejamento e gestão local, a análise de Pieper (2021, p. 105) evoca o impacto da implantação da racionalidade neoliberal no contexto de uma Universidade pública no sul do Brasil, identificando um uso institucional da narrativa de sustentabilidade ambiental limitado à perspectiva tecnocentrista. Analisando criticamente as contradições explicitadas em um conflito socioambiental identificado no interior dessa instituição, e a forma como a gestão local entendeu e respondeu às demandas surgidas a partir deste conflito, a autora apresentou como as inconsistências entre narrativas de sustentabilidade e a sua operacionalização se apresentam no cotidiano das Universidades.

Essa dinâmica, segundo a autora, revela um conflito entre os discursos defendidos pela gestão universitária em relação ao tema da sustentabilidade e meio ambiente e a condução efetiva de políticas de licenciamento ambiental, o que reproduz a forma como a racionalidade neoliberal permeia a gestão das políticas institucionais, produzindo condutas contraditórias que apontam para o caráter inconciliável das perspectivas tecnocráticas com a manutenção de um compromisso social e emancipatório no cotidiano das Universidades (Pieper, 2021, p. 109). 

 

Considerações finais

 

Compreendemos que a origem histórica das universidades brasileiras está atrelada à produção de uma conformação social que sustenta a lógica do capitalismo dependente, de tal forma que a racionalidade neoliberal tem sido o processo responsável pela manutenção de relações e formas sociais e institucionais de garantia da contínua exploração dos países dependentes. Essa dinámica impacta profundamente o desenvolvimento dos sentidos e propósitos do Ensino Superior no Brasil.

Este processo não ocorre de forma isolada ou desconectada do panorama mais amplo das transformações políticas, econômicas e sociais pelas quais o Brasil tem passado e, nesse sentido, as Universidades Públicas no Brasil têm sido palco de importantes transformações nas últimas décadas, particularmente após a redemocratização. Entretanto, se este momento histórico representou o retorno da constituição política brasileira ao princípio da democracia, para o Ensino Superior o período marcou o início de um processo de crucial ataque ao mesmo princípio democrático, dentro das balizas formuladas pela lógica neoliberal. Amparamos essa consideração na observação de que, a despeito de volumosos e profundos esforços pela democratização do acesso e garantia de manutenção dos estudantes na Universidade, essa ainda não é uma realidade para a ampla maioria da população, especialmente para a população mais vulnerabilizada, no cenário da divisão de classes sociais identificadas no Brasil.

Assim, a realização de uma crítica à assunção pela Universidades das prerrogativas neoliberais, como pudemos defender, possui múltiplas dimensões, uma vez que comporta inserções da racionalidade neoliberal em diferentes dimensões do cotidiano universitário. Desta forma, acreditamos ser urgente não apenas a assunção de uma postura radicalmente democrática por parte das gestões universitárias - tarefa atacada ferozmente pela pressão do corporativismo empresarial que impõe a lógica neoliberal na burocracia estatal -, mas a atuação dos movimentos e de cada cidadão no despertar e no alimentar a consciência crítica da sociedade sobre a importância estratégica da concepção de uma universidade popular como um dos lastros da soberania nacional, em favor do povo e de sua dignidade

 

Referências

 

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[1] Psicóloga; doutoranda em Educação Ambiental pelo Programa de Pós-Graduação em Educação Ambiental (PPGEA) da Universidade Federal do Rio Grande (FURG); Mestre em Estado, Gobierno y Políticas Públicas pela FLACSO/Brasil; Mestre em Educação Ambiental pelo PPGEAFURG. Pesquisadora do Observatório dos Conflitos Socioambientais do Extremo Sul do Brasil e Leste do Uruguai – FURG. Rio Grande, RS, Brasil. ana.furlongantochevis@gmail.com, https://orcid.org/0000-0001-7256-2596, porcentagem de autoria 60%.

[2] Pedagogo; Professor Titular da Universidade Federal de Rio Grande (FURG); Doutor em Educação pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS); Mestre em Educação pela UFRGS. Coordenador e pesquisador do Observatório dos Conflitos Socioambientais do Extremo Sul do Brasil e Leste do Uruguai – FURG. Rio Grande, RS, Brasil. carlosmachado2004furg@gmail.com, https://orcid.org/0000-0002-6075-1506, porcentagem de autoria 40%.