ANÁLISE HISTÓRICA DO BRINCAR, DO JOGO AO LONGO DO TEMPO

HISTORICAL ANALYSIS OF PLAYING, GAMES THROUGH THE TIME

Elizabeth Melnyk de Castilho1

RESUMO

O jogo ou a brincadeira são fenômenos que perpassam diferentes idades e esferas da vida humana, no entanto, na infância podem ser percebidos e vivenciados mais intensamente, sendo uma atividade significativa do ponto de vista pedagógico, cognitivo, psicológico, cultural e social. Por este viés, o presente artigo tem o propósito de apresentar uma análise histórica do ato de brincar ao longo do tempo buscando seu vínculo com a educação. Sendo assim, aborda-se brevemente diferentes perspectivas teóricas e autores, resgatando assim os aportes considerados mais pertinentes a essa temática. Por esta via, este estudo configurado em seu aspecto metodológico é de cunho teórico bibliográfico.

Palavras chave: brincar; jogo; análise histórica. | 51

ABSTRACT

Games and playing are phenomena that cross different ages and spheres of human life, although, in childhood can be perceived and experienced more intensely, being a significant activity from the pedagogical, cognitive, psychological, cultural and social. By this bias, this article aims to present a historical analysis of the act of play over time seeking its bond with education. So, we briefly discuss different theoretical perspectives and authors, thus rescuing the contributions considered more pertinent to the theme. By this way, this study configured in its methodological aspect, is of a bibliographic theoretical nature.

Keywords: play; game; historical analysis.

INTRODUÇÃO

O brincar é uma palavra facilmente encontrada no cotidiano e principalmente no vocabulário das crianças, sem dúvida, também é uma atividade vivenciada por elas em diferentes épocas e lugares como: ruas, casas, parques, quintais, pátios, brinquedotecas, entre outros locais. Tal atividade perpassa séculos e distintas civilizações.

Coordenadora Pedagógica do Ensino Fundamental da Rede Municipal de Ensino de União da Vitória, Paraná. Professora do Colegiado de Pedagogia na Universidade Estadual do Paraná (UNESPAR) – Campus União da Vitória, Paraná, Brasil. Mestre em Educação (UDE-UY). Pedagoga. Especialista em Gestão Escolar. Especialista em Neuropsicopedagogia e Educação Inclusiva. Autora dos livros: Saberes e Práticas Pedagógicas, mapeando percursos e analisando questões (2015); (Des)Naturalizando a Avaliação no Contexto Escolar (2019) E-mail: bethi_mel@yahoo. com.br.

Entretanto, ao longo da história, esses espaços foram se modificando, bem como as maneiras de brincar, os jogos, os brinquedos utilizados nas brincadeiras e o valor e significado atribuídos a elas. Sobretudo, as concepções de infância e de criança influenciaram e acompanharam essas mudanças em diferentes contextos sociais.

Mas é fato que as brincadeiras e jogos sempre existiram nas mais diversas culturas, acompanhando a história da humanidade. Assim sendo, dificilmente encontramos alguém que nunca brincou em sua vida, que não se lembre de um brinquedo ou de alguma brincadeira que gostava em sua infância; talvez, até se recorde de lugares e companheiros jogadores. Neste sentido, Friedman (2013, p. 65) afirma:

Todas as crianças do mundo e de todas as épocas, em maior ou menor medida, brincaram. Adentrar o universo teórico do brincar convida a descobrir sua história, os inúmeros teóricos que, por diversos recortes, filosofaram, refletiram, pesquisaram e continuaram a brincar neste labirinto conceitual.

Por esta perspectiva, compreendemos que o brincar pode ser interpretado por distintas áreas do conhecimento e com diferentes enfoques, como por exemplo: a filosofia, a psicologia, a antropologia, a pedagogia e a sociologia. Cada qual com suas características específicas permite analisar e compreender este fenômeno sob uma ótica diferenciada.

Partindo deste entendimento, não restam dúvidas que existiram e ainda existem inúmeros jogos e brincadeiras, assim como, variações dos mesmos, os quais são praticados tanto na infância, quanto em outras etapas da vida. Sob esse prisma, podemos dizer também que há múltiplas maneiras de compreendermos e significarmos esta atividade a partir de diferentes realidades.

Por este viés, este estudo está organizado acompanhando a linha do tempo dos períodos históricos. Sendo assim, no primeiro momento apresenta o brincar e o jogo na Antiguidade Clássica, no segundo aborda esse fenômeno no Período Medieval, no terceiro no Renascimento, em quarto no Período Moderno, no quinto momento o Período Pós-Moderno e, por fim, apresenta as considerações finais.

52 | O BRINCAR E O JOGO NA ANTIGUIDADE CLÁSSICA

Certamente um percurso de volta à história das sociedades e de sua educação nos possibilita compreender que o brincar sempre esteve presente na sociedade de uma maneira ou outra, todavia é na Antiguidade Clássica (VIII a.C. a V d.C) que vamos encontrar as primeiras reflexões sobre o uso, a relevância ou valor dos jogos e brincadeiras para o indivíduo.

O Período da Antiguidade Clássica foi marcado pelo surgimento de vários intelectuais das mais distintas áreas do conhecimento, aliado à busca de ideais de perfeição do mundo grego. Fato este, que trouxe consigo muitas contribuições para as sociedades, principalmente nas esferas artísticas, educacionais e políticas.

Neste mesmo período, encontramos o filósofo grego Platão (427 - 347 a. C), preocupado com diferentes questões da sua época, foi um dos primeiros a refletir sobre a importância do brincar para a formação integral do homem, dando ênfase ao jogo como um meio de aprendizagem. Para Platão, o ideal de educação era a formação integral do homem e do cidadão. Entre suas principais obras estão “A República”, escrita por volta de 380 a.C. e “As Leis”, publicada posteriormente, por volta de 437 a.C.

Em um dos trechos de seus diálogos em “As Leis”, Platão explica o sentido do jogo infantil:

Digo, pois, e afirmo que o homem que tem a intenção de se destacar em algo deve praticar isso mesmo desde sua infância, seja no jogo seja em ocupações mais sérias, em cada uma das coisas que se relacionam com seu objetivo. Por exemplo: quem deseja ser um bom agricultor ou um bom arquiteto deve jogar respectivamente a lavoura da terra e a construção de casa de brinquedo; quem os educa deve proporcionar-lhes pequenos instrumentos de trabalho, imitações do verdadeiro e, naturalmente, deve ensinar-lhes com antecipação aqueles ensinamentos que exigem uma prévia aprendizagem, como, por exemplo ao construtor, medir e nivelar; ao militar, montar a cavalo jogando ou qualquer outra coisa deste estilo. Por meio do jogo há de tentar educar os gostos e afeições das crianças para a meta que hão de alcançar uma vez chegados a maturidade. (PLATÃO, 1999, p.85)

Neste sentido, Platão incentivava o uso do jogo desde a infância como meio de aprendizagem de um ofício e um treinamento para o trabalho que o cidadão exerceria na idade adulta. Para ele, era evidente a necessidade deste treinamento no jogo como uma preparação da criança, através do qual ela poderia demonstrar seus gostos e interesses desde cedo.

Por este viés, um ponto a destacar é o caráter informativo da brincadeira, ou seja, através dela revelam-se aspectos relacionados aos brincantes, os quais, se observados no contexto escolar por uma via pedagógica, podem trazer informações significativas para o trabalho do professor com a criança.

Encontramos ainda na Antiguidade Clássica, outro filósofo grego influente: Aristóteles (384 a 322 a. C) discípulo de Platão, que valorizou e preocupou-se com questões referentes à educação. Ademais, escreveu obras sobre distintos assuntos e áreas do conhecimento que trouxeram contribuições nas esferas políticas, educacionais, éticas e filosóficas entre outras. Seu ideal de educação estava vinculado à virtude. Deste modo, a educação treinaria o homem para agir de maneira virtuosa na sociedade.

Dentre suas obras está a “Política” (1966), na qual faz referência ao fenômeno do jogo, mencionando que:

Não certamente a jogar, porque então o jogo constituiria forçosamente a finalidade da nossa vida, o que é impossível (é, aliás, durante a labuta quotidiana que os jogos são melhor empregues, pois o trabalho árduo exige pausas, e os jogos são próprios para dar descanso, sendo que o trabalho implica cansaço e esforço). Nesse sentido, importa fomentar os jogos, mas sempre acautelando o momento oportuno da sua utilização e aplicando-os como se de uma terapêutica se tratasse, porquanto o movimento da alma que deles resulta produz relaxamento, e o prazer que deles se retira facilita o descanso. (ARISTÓTELES, 1966)

Por esta perspectiva, Aristóteles justifica e dá uma finalidade para o uso do jogo considerando-o como um meio de relaxamento, recreação e descanso do espírito após o esforço empregado no trabalho e o cansaço advindo desta atividade. Sendo assim, um elemento caracterizava o jogo para o filósofo: o prazer. Este prazer alcançado e associado ao jogo seria o aspecto que facilitaria o descanso, embora, o que constituiria o motivo para jogar poderia ser o “puro prazer” que esta atividade proporciona.

Sendo assim, não é difícil associar o jogo ao prazer e ao relaxamento, à medida que esses atributos estão atrelados ao jogar, não importando a idade do sujeito e mesmo que esta atividade não seja vivenciada | 53 igualmente em todas as etapas da vida. Logo, o prazer é parte constituinte do processo do jogo, mas também, pode estar vinculado com o resultado positivo, ou seja, a satisfação de alguém ter ganho ou vencido jogando.

AS NUANCES DO BRINCAR E DO JOGO NO PERÍODO MEDIEVAL

Continuando o percurso histórico, adentramos no Período Medieval (séc. V ao XV) o qual foi marcado pela soberania e influência da Igreja Católica; inclusive a educação nesta época, estava vinculada a ela, e era ministrada inicialmente junto às catedrais e mosteiros. No entanto, a educação era privilégio de poucos, sendo mais voltada para os filhos da nobreza. Entre os ensinos curriculares privilegiavam-se o ensino de sete disciplinas: gramática, retórica, lógica, aritmética, geografia, astronomia e música.

Neste período, como reflexo da influência da Igreja, a educação baseava- se, essencialmente, no ensino de aspectos morais e da fé cristã. Assim, a formação do aluno estava mais voltada ao aprendizado de dogmas religiosos professados pelo catolicismo e o centro do processo educativo era a transmissão do conhecimento do professor para o aluno; e neste contexto, cabia ao aluno a obediência, a memorização e a repetição, enquanto o professor passava as lições lendo e recitando textos a ele.

Entretanto, nesta esfera educacional, nem todos tinham acesso aos livros. A educação da criança pequena medieval ainda não aparecia como uma preocupação, visto que ela era tida, nesta época, como um adulto em miniatura. Desta maneira, vivenciava o mundo como os adultos e, inclusive, participava da maioria de suas atividades.

No que tange ao jogo no Período Medieval, este era visto como entretenimento. Seu valor estava na situação de interação social e comunicação que promovia entre as pessoas da comunidade em geral. Esta atividade sempre estava presente e ganhava espaço nos momentos festivos e não havia diferença entre os jogos praticados por crianças ou adultos, tampouco, entre classes sociais e gênero. No entanto, não era considerado algo sério por ser facilmente associado aos jogos de azar que eram comuns neste período.

Podemos também observar esta questão na obra “Etimologias”, escrita por volta dos anos 612 a 625 pelo filósofo cristão Isidoro de Sevilla (560-636), o qual escreveu vinte livros com distintos assuntos, dentre eles, trata da temática do jogo. Em seu livro décimo oitavo, intitulado “Da guerra e dos jogos”, o autor menciona a relação dos jogos de azar com “o engano, a mentira e o prejuízo” sendo essa a justificativa de que “o jogo esteve proibido pelas leis durante determinadas épocas”. (ISIDORO, 1982, p. 68).

Ainda no mesmo livro, observamos outros jogos praticados na época, entre eles uma variedade de jogos utilizando a bola. Também aparecem jogos circenses e ginásticos, porém Isidoro condena estes dois tipos de jogos. Segundo ele, os jogos ginásticos seriam cinco: salto, corrida, lançamento, força e luta. Já os jogos circenses, estariam relacionados ao teatro, ao circo e outros espetáculos.

As justificativas de Isidoro para condenar os jogos ginásticos são descritas em sua obra mencionada acima, e de acordo com ela, esses jogos constituem “motivo de glória para os homens” (ISIDORO, 1982, p. 17). Desta maneira, diante dos ensinamentos cristãos, isto seria condenável. Quanto aos jogos circenses, Isidoro os associava ao culto aos demônios, e este era o motivo do repúdio. Em vista disso, fica evidente que com

o advento do Cristianismo os jogos não eram bem vistos, mas sim, considerados profanos e imorais. Essa desvalorização dos jogos deu-se a partir dessas associações feitas a eles na realidade da época.

No entanto, encontramos em Thomas de Aquino (1225-1274), professor de teologia e filosofia e também considerado santo pela igreja católica, a obra “A Suma Teólogica”, a qual se constitui de nove volumes e entre eles, a questão do jogo é contemplada. No volume III, podemos perceber a ideia do jogo presente como uma atividade de repouso e de oposição ao trabalho. Segundo ele:

Portanto, deve-se afirmar que as ações do jogo não se ordenam para um fim extrínseco, mas se ordenam para um fim, o bem do próprio jogador, enquanto lhe trazem prazer ou descanso. Ora, o bem perfeito do homem é seu último fim (AQUINO, 2003, p. 43).

Desta maneira, é posto em evidência o valor do processo que o jogo desencadeia internamente no indivíduo, bem como o benefício que este produz para aquele que joga. Por essa perspectiva, aparecem vinculados o prazer e o descanso enquanto aspectos propiciados pelo exercício desta atividade.

54 | Conforme avança em sua obra “Suma Teológica”, Aquino reforça esta ideia com o seguinte trecho: “Assim,

o lazer e o jogo e tudo o que tem a ver com o repouso, são deleitáveis enquanto afastam a tristeza que provêm do trabalho”. (AQUINO, 2003, p. 395). Deste modo, o trabalho visto pelo autor como atividade cansativa, poderia ser compensado por um momento de alegria e repouso por meio do jogo.

Fica assim evidente, a comum oposição entre trabalho e jogo. Por este prisma, se considerarmos que o trabalho desgasta o corpo e a mente, em contrapartida, o jogo relaxa, descontrai, traz alegria e divertimento para aquele que dele usufrui. Em síntese, o jogo promove o bem-estar daquele que joga.

Contudo, o Período Medieval encerra-se com a conotação de jogo como algo desprovido de valor, o que vinha em consonância com uma educação disciplinadora, e era associado fortemente aos jogos de azar, bem como ao relaxamento, ao descanso e uma atividade totalmente oposta ao trabalho. Porém, este quadro começa a mudar no período seguinte.

PERSPECTIVAS DO BRINCAR E JOGO NO RENASCIMENTO

Se considerarmos o Renascimento (séculos XV-XVI) como uma época de mudanças e transformações, de um retorno às artes gregas, o humanismo clássico, podemos considerar que foi um período favorável para que surgissem novas visões e pensamentos a respeito do ser humano, o que direcionou reflexões também, voltadas à educação.

Neste período, houve mudanças de como o homem via e concebia o mundo a sua volta, expressado por uma tendência humanista. Assim, a educação encontrava na razão a via de se chegar ao conhecimento. Um fato marcante desta época e que influenciou diretamente a educação e a cultura, foi a invenção da imprensa por Gutenberg por volta do século XV, o que trouxe um crescimento bibliográfico para a época. Os livros, antes restritos ao Clero, passaram a ser mais acessíveis às outras classes de pessoas; fator que fortaleceu e acelerou a disseminação da cultura, bem como do conhecimento científico.

Na esfera educacional deste período, encontramos o escritor francês François Rabelais (1483-1555) autor da obra cômica “Gargântua e Pantagruel” (1532), na qual utiliza personagens numa trama para tecer críticas, inclusive aos sofistas, contrapondo-se à educação tradicional da época, o que levou sua obra a sofrer críticas neste contexto.

Nesta obra, há um capítulo chamado “Os jogos de Gargântua” no qual são mencionados mais de duzentos tipos de jogos praticados pelo personagem Gargântua. Entre estes, estão jogos de cartas, jogos com dados e jogos de tabuleiro. Ainda no mesmo livro, aparecem outros jogos praticados pelo personagem quando estava na companhia do pedagogo responsável por sua educação.

Se iam a Bracque ou aos prados, ali jogavam à bola, à tacada, à palma, exercitando galhardamente o corpo como antes haviam exercitado a alma. Presidia a todos os jogos a mais ampla liberdade, pois terminavam a partida quando o achavam conveniente. (RABELAIS, 2010, p. 23).

Neste trecho, o jogo aparece como exercício para o corpo, visto que o momento de jogo, na trama narrada por Rabelais, acontecia depois de terem cumprido três horas de leitura; por isso, a referência a antes ter exercitado a alma. Percebe-se que o jogo dos personagens, neste âmbito, era guiado pela liberdade.

Por este viés, fica evidente que o jogo pode ser praticado em diferentes ambientes em consonância com as regras pré-estabelecidas pelo próprio jogo ou pelos seus jogadores, sendo também condicionado por seus objetivos, preferências e moldado pelo entorno onde acontece.

Ainda no Renascimento, o filósofo Michel Montaigne (1533-1592) produz a obra “Ensaios” (1580), na qual aborda diferentes assuntos, entre eles, a educação e o jogo. Sua principal contribuição nesta esfera está no cepticismo. Seguindo essa linha teórica, o filósofo não aceita tudo que é propagado como certo, no entanto tudo pode ser questionado e analisado criticamente, inclusive a educação.

Em sua obra “Ensaios”, Montaigne menciona e considera o jogo em seu caráter educativo:

Estudamos as declinações a maneira de que os servem do jogo de damas para aprender a aritmética e a geometria, pois entre outras coisas haviam aconselhado meu pai que me fizesse gostar de ciência e o cumprimento do dever, por espontânea vontade, por meu individual desejo, ao par que educar minha alma com toda doçura

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e liberdade, sem grilhões nem rigor (MONTAIGNE, 2004, p. 193).

Neste contexto, Montaigne parte do exemplo das orientações dadas a seu pai em relação a seu aprendizado, mostrando-se contrário à severa disciplina e repressão, tendo também uma postura contrária ao método de memorização utilizado. Por isso, dava importância à educação que valorizava a liberdade, e deste modo, deixava evidente o caráter educativo do jogo quando o considerava como um meio de aprendizagem de conteúdo.

O referido autor (2004), na mesma obra, ainda faz referência à seriedade dos jogos da criança, mencionando que os jogos infantis não são apenas jogos, senão suas mais sérias atividades. Por este viés, o autor consegue perceber a seriedade que a criança emprega enquanto brinca e o jogo é visto não apenas como uma simples atividade.

O BRINCAR E O JOGO A PARTIR DO PERÍODO MODERNO

O Período Moderno inicia-se no fim do século XV e vai até metade do século XX, foi uma época marcada pelas grandes navegações e expansão comercial; também, período quando nasceu o capitalismo. Neste contexto, ocorreu, também, a Revolução Industrial iniciada no século XVIII, a qual influenciou a sociedade e alterou diretamente os modos de produção.

Acompanhando este quadro, surge a preocupação com a educação em consequência da necessidade de uma melhor qualificação profissional dos trabalhadores, pois havia demanda de mão de obra que atendesse e acompanhasse as características do então mercado de trabalho, o qual vinha passando por mudanças e se reconfigurando.

Juntamente a isto, no Período Moderno, a família também estava se reconfigurando e juntamente com a escola, assumia e compartilhava uma função educativa. Este cenário se apresenta em consequência do surgimento do “sentimento de infância” relatado por Philippe Áries na sua obra “História Social da Criança e da Família” (1981). Segundo o autor, a partir desta “descoberta da infância”, a qual ele considera que se deu a partir do fim do século XVI, houve uma nova percepção sobre a criança e a infância e consequentemente sobre sua educação.

Em consonância com o reconhecimento da infância, a criança passa a ser vista como um ser ou alguém diferente do adulto, com características particulares e que necessita de cuidados específicos para ser educada. Diante disso, começam a surgir novos métodos de ensino. Nesta direção, a escola começa a adquirir um caráter formador em relação à criança, no entanto é preciso destacar que, neste período, a educação ainda valorizava muito a disciplina.

Neste cenário, encontramos João Amos Comênio (1592-1670), o qual se dedicou à teologia e à pedagogia e é considerado o criador da didática moderna. Uma de suas principais obras foi “Didática Magna” (1657), na qual apresenta alguns fundamentos e princípios didáticos, entre os quais, o jogo aparece como como instrumento e estratégia de aprendizagem na esfera educacional.

Neste sentido, Comênio (1976) menciona que não queria que nas escolas se aprendessem coisas diversas e sim, as mesmas coisas, porém, de maneira diversa. Todas aquelas coisas que pudessem tornar os homens verdadeiramente homens, os cristãos verdadeiramente cristãos e os sábios verdadeiramente sábios, entretanto segundo a idade e o grau da preparação antecedente e conduzindo sempre mais acima. Para Comênio, o ensino deveria ter caráter universal, sendo um de seus princípios o de “ensinar tudo a todos”, desta maneira, via uma possibilidade de reforma da escola.

Nesta perspectiva, o referido autor considerou o jogo no processo de ensino e aprendizagem referindo-se aos estudantes da seguinte maneira: Aos estudantes, porque poderão, sem dificuldade, sem tédio, sem gritos e sem pancadas, como que se divertindo e jogando, ser conduzidos para os altos cumes do saber. (COMÊNIO, 1976). Sob esse prisma, fica evidente que ele era contrário a adotar qualquer forma violenta no ensino, todavia, acreditava que o aluno poderia aprender divertindo-se e com prazer.

Posteriormente, encontramos as ideias do filósofo Jean-Jacques Rousseau (1712-1778), o qual trouxe contribuições significativas para a pedagogia abordando questões referentes à educação e à infância. Na obra “Emílio, ou da Educação” (1762), promove pensamentos filosóficos acerca da educação. Neste sentido, va

56 | lorizou a infância, mencionando que:

A natureza quer que as crianças sejam crianças antes de serem homens. [...] A infância tem maneiras de ver, de pensar, de sentir que lhe são próprias, nada sendo menos sensato que querer substituir-lhe as vossas [...] tratai

o vosso aluno segundo a sua idade (ROUSSEAU, 1999, p.425).

Nessa perspectiva, Rousseau reconhecia realmente a infância como uma etapa da vida com particularidades e características próprias, demonstrando a necessidade de se respeitar o ritmo infantil e preservar a infância, considerando que ela é diferente da idade adulta. Da mesma forma, o professor é orientado a adequar a educação com a idade do aluno em função da sua fase de desenvolvimento e partindo da compreensão da natureza infantil.

Neste contexto, podemos mencionar o pensamento de Rousseau em relação ao jogo, apresentado em sua obra mencionada acima:

Devemos por outra parte refletir em que tudo isto não é ou não deve ser mais que um jogo, fácil e voluntário na direção dos movimentos que lhes pedem a natureza; arte de variar seus passatempos para que mais gratos lhe sejam, sem que nunca os converta em trabalho a violência. Porque ao cabo, em que hão de divertir, que não possa eu convertê-lo em matéria de instrução? (ROUSSEAU, 1999, p. 189).

O jogo compreende a expressão dos movimentos da natureza da criança, e para o autor, esta deve viver a infância realmente sendo criança. Nesta perspectiva, Rousseau vê a possibilidade de converter um conteúdo em algo divertido e compreende que mesmo se divertindo a criança pode estar aprendendo.

No início do século XIX altera-se a concepção de criança, o que influi diretamente na concepção do brincar. Neste período, a criança começa a ser vista como dotada de uma natureza boa, com valores positivos, como

o próprio Rousseau preconizava que o homem é naturalmente bom.

Neste contexto, surge na Europa o Romantismo, que perdurou durante o século XVIII e grande parte do sé-culo XIX, e consistiu-se em um período oportuno para a valorização da criança e também do jogo que, neste cenário, passa a ser valorizado. Neste momento, alguns filósofos e educadores dedicam-se a estudar questões relacionadas à criança e ao jogo infantil.

E é justamente neste cenário, influenciado pelo pensamento romântico de sua época, que encontramos Friedrich Froebel (1782-1852), um pensador alemão, que criou em 1837 na Alemanha, o Kindergarten (Jardim de Infância). Foi através dele que o jogo, compreendido como objeto e ação de brincar, caracterizado pela liberdade e espontaneidade, aparece no contexto das escolas infantis vinculado à função pedagógica.

Para Froebel (1912), o objetivo da educação seria formar o homem segundo a sua vocação para uma vida pura e santa, ajudando-o a alcançar sabedoria e tendo plena consciência de que, é por meio da sabedoria que se obtêm a satisfação legítima das necessidades externas e internas, e só por ela se alcançaria a felicidade.

Em sua obra “A educação do homem” (1826), uma das mais importantes produzidas por Froebel, ele aborda distintos assuntos relacionados à educação e ao desenvolvimento do ser humano numa perspectiva filosófica, deixando claro sua preocupação com o desenvolvimento infantil que o levou a dedicar um capítulo especialmente a essa fase intitulado: Segundo grau de desenvolvimento do homem: a criança.

Mais adiante na mesma obra do autor, foi dedicado um capítulo exclusivamente para mencionar questões relacionadas ao jogo infantil denominado: O jogo: manifestações espontâneas e exercícios de toda natureza. Por essa perspectiva, Froebel dedica-se a falar das crianças e da relevância do jogo na vida infantil. Diante disto, esta atividade ganha mais valor e importância na educação da criança pequena, passando assim, a ser incorporado ao currículo da Educação Infantil.

Ainda no Período Moderno, encontramos representantes da psicologia cognitiva, entre eles Lev Vigotsky (1896-1934), pensador e psicólogo bielo-russo que abordou questões referentes à linguagem, ao desenvolvimento e à aprendizagem, referindo-se também ao brincar da criança. Entre suas obras estão: “O instrumento e o símbolo na formação das crianças” (1930), “Formação social da mente” e “Pensamento e linguagem” (1962). É preciso mencionar que, muitas de suas obras foram publicadas apenas depois de sua morte.

Um dos principais pontos que iluminam sua teoria é a possibilidade do desenvolvimento infantil a partir das interações sociais. Assim, Vigotski (2014) reconhece que aprendizagem e desenvolvimento não entram | 57em contato pela primeira vez na idade escolar, mas estão ligados entre si desde os primeiros dias de vida da criança. Por este prisma, fica evidente que a criança começa a aprender e desenvolver-se antes mesmo de entrar na escola, e esses dois aspectos tem íntima e inevitável relação.

Desse modo, Vigotski ainda menciona dois níveis de desenvolvimento mental infantil. Neste âmbito, o papel do brincar entra como auxiliar da criança para o avanço de um nível de desenvolvimento a outro, ou seja, o referido autor vê nesta atividade, uma maneira de proporcionar a possibilidade da criança avançar em seu desenvolvimento.

Nesta direção, ainda no século XX aumentam os discursos e práticas em torno da utilização de jogos e brincadeiras no contexto educativo. Assim, o brincar torna-se presente em documentos oficiais, é encontrado em publicações de revistas educacionais e a indústria de brinquedos e de jogos investe na produção de “jogos pedagógicos” e “brinquedos educativos” voltados para o desenvolvimento das crianças.

IMPLICAÇÕES NO BRINCAR E NO JOGO DO PERÍODO PÓS-MODERNO EM DIANTE

É aproximadamente na metade do século XX que se inicia o período Pós-Moderno, época marcada pela globalização em função dos grandes avanços tecnológicos que produzem um amplo crescimento dos meios de comunicação, bem como, do seu acesso. Desta maneira, percebe-se a influência direta do universo tecnológico ou digital, configurado assim, um tempo caracterizado pela facilidade de acesso às diversas formas de comunicação, liberdade de expressão dos indivíduos e permeado pelo consumismo. Neste âmbito, acompanhamos, além de inovações tecnológicas, transformações políticas e econômicas.

Na esfera tecnológica, surgem jogos virtuais, vídeo games modernos, brinquedos eletrônicos, entre tantos outros aparelhos que muitas crianças pequenas já possuem, como celulares e tablets, os quais oferecem a possibilidade de que se incluam neles os jogos. Este cenário também influi diretamente na escola e na educação da criança, e consequentemente nos seus jogos e brincadeiras. Desta maneira, é impossível negar que as crianças da atualidade brincam de maneira diferente se comparadas às crianças de algumas décadas atrás.

Essas situações colaboram para tornar o cenário propício para alterar as formas de brincar da criança, e de certa maneira, incentiva um brincar que até há pouco tempo não existia, como por exemplo, um jogo solitário no mundo virtual sem a interação com o outro. Desta maneira, muitas brincadeiras tradicionais vão perdendo espaço e valor na vida da criança em função dos novos suportes encontrados.

Deste modo, as discussões em relação à educação pós-moderna continuam crescentes. A criança é considerada sujeito ativo do processo de ensino e aprendizagem, entendida como alguém que tem direitos, ou seja, “sujeito de direitos” como expressam alguns documentos que se referem a ela. Assim, crescem as preocupações com a infância e suas necessidades. E nesse sentido, ocorre uma expansão da oferta da Educação Infantil brasileira, inicialmente oferecida de forma assistencialista. Posteriormente, no ano de 1988, se torna uma etapa da Educação Básica, mudando assim, seu caráter assistencialista, que consistia em apenas prestar atendimento e cuidado à criança, para uma preocupação entre dois princípios: o do cuidar e do educar.

No entanto, é no início da segunda década do século XXI que a pré-escola brasileira se constitui legalmente como direito da criança aos quatros anos de idade, pois anteriormente, o ingresso da criança na pré-escola ficava a critério dos pais ou responsáveis por ela, visto que a obrigatoriedade de ingresso na escola de En-sino Fundamental era apenas aos seis anos de idade. Essa mudança na lei gerou a ampliação de vagas e a universalização do acesso, independente de fatores como classe social ou nível socioeconômico.

Nesse período Pós-Moderno, encontramos Jean Chateau (1908-1990), um escritor francês que desenvolveu a obra “O jogo e a criança” (1954) por meio da qual, traz importantes reflexões para se pensar na intrínseca e inseparável relação entre a criança e o brincar, ou a criança e o jogar, como o próprio título de sua obra demonstra. É justamente com base nesta relação que se constitui a importância do brincar que, segundo o autor, contribui para a vida futura da criança.

Em sua obra, Chateau faz um percurso que analisa as características do jogo presentes em cada fase da vida da criança e dos vários tipos de jogos que segundo ele, as crianças vivenciam. Para o autor, quando a criança brinca, revela características de seriedade, de esgotamento, de espontaneidade, de encanto, de

58 | distanciamento do real e um treinamento inconsciente das futuras atividades da “vida séria”.

Neste sentido, (CHATEAU, 1987, p. 14) considera que “A criança é um ser que brinca e nada mais”. O que revela o brincar na vida da criança como uma atividade constante, a qual ocupa maior parte do seu tempo diário. Segundo ele, o jogo é o centro da infância, e assim sendo, destaca que não se pode imaginar a infância sem seus risos e brincadeiras. Desta forma, reconhece o papel pedagógico do jogo, afirmando que através dele, pode-se buscar um meio de educação.

De fato, o brincar se constitui na principal atividade ou ocupação do cotidiano infantil. Considerando que muitos avanços acontecem na vida da criança desde o seu nascimento e no decorrer dos seus primeiros anos de sua vida, a mesma vive um intenso processo de apropriação de conhecimentos e a pré-escola pode aproveitar-se desta relação constante para estabelecer uma metodologia que considere e valorize as particularidades da infância.

Neste âmbito, encontramos as contribuições de Gilles Brougère (1955), pesquisador francês da cultura lúdica infantil, autor das obras “Brinquedo e cultura” (1994) e “Jogo e educação” (1995). Brougère analisa e situa o jogo sob uma perspectiva sociológica e compreende a brincadeira como fenômeno cultural. Nesta mesma perspectiva, mostra em suas obras, as relações entre criança, jogo, educação e cultura.

Assim, o autor (2010) afirma que existe uma cultura lúdica, que se situa dentro da cultura geral a qual a criança pertence, considerando que esta cultura lúdica pode incorporar elementos e é influenciada. Por este viés, ele considera o brinquedo como um instrumento que colabora com o desenvolvimento desta cultura lúdica. Sob esta mesma perspectiva, Brougère desconsidera que o brincar é algo inato e considera que é aprendido. Segundo ele:

A brincadeira não é inata, pelo menos nas formas que ela adquire junto ao homem. A criança pequena é iniciada na brincadeira por pessoas que cuidam dela, particularmente sua mãe. Não tem sentido afirmar que uma criança de poucos dias, ou de algumas semanas, brinca por iniciativa própria (BROUGÈRE, 2010, p. 104).

Para Brougère, a criança aprende a brincar desde bem pequena, com as primeiras pessoas com as quais tem contato. Assim sendo, é possível justificar os diferentes jogos encontrados nas mais distintas culturas, como também as brincadeiras típicas de alguns povos, ficando claro que esta atividade sofre influência direta do meio social e cultural.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Os jogos e brincadeiras atravessam os séculos e estão presentes, sendo praticados nas mais distintas civilizações, embora seus conceitos e significados nem sempre foram os mesmos. Todavia, a importância deste fenômeno já era vista desde a Antiguidade Clássica pelos primeiros filósofos gregos. Por este viés, o jogo configurou-se como objeto de reflexões filosóficas, psicológicas, pedagógicas, sociológicas e antropológicas entre outras áreas do conhecimento, sendo problematizado ao longo do tempo.

REFERÊNCIAS

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Recibido el: 14/04/2020 Aprobado el: 24/06/2020