Aprobado: 08/05/2024
Este artículo ha sido aprobado por la editora, Dra. Susana Graciela Pérez Barrera
Cleide Covacevich Giovanetti[1]
Resumen
Con el objetivo de comprender la relación entre género y la identificación de estudiantes con indicadores de Altas Habilidades/Superdotación (AH/SD), este artículo trae algunas reflexiones teóricas sobre AH/SD, la cultura de género y la identificación de estudiantes con AH/SD, en Educación Fundamental, así como la necesidad para la formación inicial y/o continuada del profesorado. Para realizar la investigación se optó por realizar una revisión bibliográfica sobre las investigaciones realizadas en el área. El tema analiza los trabajos de Gardner (1995), Alencar y Fleith (2001), Renzulli (2004, 2014), Auad (2006), Muñoz y Guerreiro (2006), Freitas y Pérez (2012, 2016), buscando comprender la relación entre la identificación de AH/SD y la cuestión de género en el contexto escolar. Los resultados encontrados apuntan a un discurso de género estereotipado, donde niños y niñas tienen roles bien definidos y, en consecuencia, las niñas con AH/SD siguen siendo cada vez más invisibles en sus potencialidades y capacidades. La formación de docentes en esta área es urgente y más que necesaria para crear oportunidades para las niñas con AH/SD.
Palabras clave: altas habilidades, superdotación, género, identificación.
Abstract
Aiming to understand the relationship between gender and the identification of students with High Ability/Giftedness (HA/G) indicators, this article brings some theoretical reflections on HA/G, gender culture and the identification of students with HA/G, in Education Fundamental, as well as the need for initial and/or continuing training for teachers. To carry out the research, we chose to carry out a bibliographic review on the research carried out in the area. The theme analyzes the works of Gardner (1995), Alencar and Fleith (2001), Renzulli (2004, 2014), Auad (2006), Muñoz and Guerreiro (2006), Freitas and Pérez (2012, 2016), seeking to understand the relationship between the identification of HA/SD and the issue of gender in the school context. The results found point to a stereotypical gender discourse, where boys and girls have well-defined roles and, consequently, girls with HA/G continue to be increasingly invisible in their potential and abilities. Teacher training in this area is urgent and more than necessary to create opportunities for girls with HA/G.
Keywords: high abilities, giftedness, gender, identification.
Resumo
Objetivando compreender a relação entre gênero e a identificação das alunas com indicadores de Altas Habiliddes/Superdotação (AH/SD), o presente artigo traz algumas reflexões teóricas sobre as AH/SD, a cultura de gênero e a identificação de alunas com AH/SD, no Ensino Fundamental, bem como a necessidade de formação inicial e/ou continuada para professores. Para realização da pesquisa optamos por realizar uma revisão bibliográfica sobre as pesquisas realizadas na área. O tema analisa as obras de Gardner (1995), Alencar e Fleith (2001), Renzulli (2004, 2014), Auad (2006), Muñoz e Guerreiro (2006), Freitas e Pérez (2012, 2016), buscando entender a relação entre a identificação das AH/SD e a questão de gênero no contexto escolar. Os resultados encontrados apontam para um discurso de gênero estereotipado, onde meninos e meninas possuem papeis bem definidos e, por consequência, as meninas com AH/SD continuam cada vez mais invisíveis em suas potencialidades e habilidades. A formação de professores nesta área é urgente e mais que necessária para que haja abertura de oportunidades para as meninas com AH/SD.
Palavras-chave: altas habilidades, superdotação, gênero, identificação.
A imposição das diferenças de gênero pela sociedade contemporânea induz os meninos a se envolverem em atividades relacionadas a carros, bola e lutas, enquanto as meninas são direcionadas a brincar com bonecas e panelinhas, por exemplo. Tal paradigma cria um ambiente fictício, no qual as meninas ‘aprendem’ que devem adotar características de delicadeza e sonhadoras, enquanto os meninos são incentivados a expressar força e aventura. É imperativo que haja uma quebra desses estereótipos, permitindo que meninos revelem suas fragilidades e emoções, e meninas, suas forças, a fim de cultivar recursos essenciais para a convivência harmoniosa consigo mesmos.
Conforme afirmado por Pérez e Freitas (2012), ser uma menina em nossa sociedade implica enfrentar diversos desafios, incluindo a desigualdade de gênero, estereótipos, preconceitos e violência. Esses desafios se acentuam para meninas com Altas Habilidades/Superdotação (AH/SD), devido às barreiras adicionais impostas por sua condição e à escassez de exemplos femininos em áreas tradicionalmente designadas como 'masculinas', como ciências, política e artes.
Realizar a identificação de meninas com AH/SD nos remete a análise da linha de pesquisa 1, do Programa de Pós-Graduação da Universidad de la Empresa: Cultura, Sociedade e Educação, uma vez que tem como objetivo abordar as normas culturais e experiências, buscando práticas educativas que rompam com os estereótipos de gênero.
Corroborando a ideia, Neumann e Vogel (2021), apontam que meninas, por volta dos seus 8 ou 9 anos, procuram esconder seu potencial para poder estabelecer relações com seus pares, justamente devido aos estereótipos de gênero intrínsecos em nossa sociedade. Diante desse cenário, esta pesquisa busca entender a relação entre a identificação das AH/SD e a questão de gênero no contexto escolar, a partir de uma revisão bibliográfica sobre as pesquisas realizadas previamente sobre o tema em estudo.
A Política Nacional da Educação Especial na Perspectiva da Educação Inclusiva (Brasil, 2008), define os (as) alunos (as) com AH/SD como sendo aqueles que possuem elevado potencial em áreas como intelectual, habilidade acadêmica específica, psicomotora, pensamento criativo-produtivo, talento para as artes, liderança, que pode ocorrer de maneira isolada ou combinada.
Renzulli (2004), com a Teoria dos Três Anéis, compreende as AH/SD como o resultado da interação entre a habilidade acima da média, comprometimento com a tarefa e criatividade, representadas por anéis que se interligam.
Por habilidade acima da média entende-se como a capacidade de processar informações e relacioná-las a experiências que resultam em respostas apropriadas e pensamento abstrato (Pérez & Freitas, 2016). O comprometimento com a tarefa refere-se à motivação que o indivíduo tem para dedicar grande quantidade de energia a algo específico ou a uma área de desempenho. Já a criatividade caracteriza-se pela flexibilidade e originalidade de ideias, receptividade para o novo e diferente, sensibilidade para os detalhes e senso de estética desenvolvido (ibid. 2016).
Figura 1 –
Teoria da Superdotaçãodos Três Anéis
Fonte: Renzulli, 2004.
Em sua teoria, Renzulli (2004) também sinaliza que existem dois tipos diferentes de superdotação, sendo elas a acadêmica e a produtivo-criativo. O tipo de inteligência acadêmica está relacionada ao alto rendimento acadêmico e pela facilidade em aprender, apresentando como características pessoas com bom raciocínio, facilidade e agilidade no processamento de informações, boa memória e fluência verbal. Já a produtivo-criativa envolve as ideias, expressões artísticas, sendo características das pessoas deste tipo de superdotação pensar por analogia, gostar de fantasiar, brincar com as ideias, não se preocupar com as convenções e ser sensíveis aos detalhes.
Outros autores, embora não tenham feito estudos ligados diretamente às AH/SD, possuem teorias que contribuem para o entendimento das diferentes inteligências, como é o caso das teorias de Gardner (1983) e de Goleman (1995), principalmente no que se refere a questão das inteligências múltiplas[2], propostas por Gardner (1983) e a Inteligência Emocional[3], desenvolvida por Goleman (1995), uma vez que essas teorias surgiram a partir de questionamentos sobre o fato de serem considerados inteligentes apenas os indivíduos que tivessem desempenho comprovado por um alto resultado em testes de inteligência padronizados, obtendo seu valor de QI[4], sem levar consideração o indivíduo como um todo.
Para as autoras Alencar e Fleith (2001), as AH/SD são compreendidas com um conjunto de características que envolve sistemas biológicos, sociais, emocionais, intelectuais, históricos e sociais, tornando-se um constructo psicológico e multidimensional.
Neste mesmo cenário, em que não se restringem as AH/SD apenas a uma inteligência, Gagné (2000) desenvolveu o Modelo Diferenciado de Superdotação e Talento, na qual busca diferenciar talento natural e habilidade desenvolvida, sendo esta última composta por três componentes, a saber: Habilidades Gerais, referindo-se a habilidades básicas; Habilidades Específicas, que envolvem a área de aptidão, com aquisição de conhecimentos especializados e o Talento Inerente, que é a combinação das habilidades intelectual, criativa, sócio afetiva, sensoriomotora e percepção extra-sensorial (Faust, 2020).
Ainda na perspectiva multidimensional, Franz Monks (2003) concebe o Modelo Multifatorial da Superdotação, onde afirma que o desenvolvimento psicológico, social e expressivo não é inerte, sofrendo mudanças durante a infância e adolescência. Neste modelo, a habilidade acadêmica não precisa ser de excelência para que o indivíduo tenha AH/SD, corroborando com as teorias de Renzulli (2004), Gardner (1983) e Gagné (2000).
Desconstruindo estereótipos: compreendendo a influência da cultura na identidade de gênero
“Meninas e meninos [...] são levadas (os) a se identificarem com padrões do que é feminino e masculino para em seguida, melhor realizarem estes papeis” (Araújo et al., 2009, p. 3).
As posturas e condutas historicamente associadas ao sexo masculino têm prevalecido de maneira geral. O âmbito tradicionalmente vinculado às mulheres é
percebido como uma esfera particular e considerado como destituído de relevância para a sociedade como um todo. Nesse contexto, a supremacia de um gênero sobre o outro estabelece os alicerces de uma estrutura social hierárquica, influenciando as posições individuais independentemente das habilidades específicas, fenômeno conhecido como patriarcado (Subirats, 1990 como citado em Brasil, 2006, p. 85).
O patriarcado, enquanto estrutura organizacional da vida social, permeia as relações humanas em variadas sociedades, apresentando-se de forma mais ou menos óbvia por meio de diversas manifestações em todas as camadas sociais.
Nesse contexto, segundo Muñoz e Guerreiro (2006), o que hoje conhecemos como 'machismo' tem suas raízes nos valores que influenciam as interações sociais, perspectivas e comportamentos relacionados aos diferentes gêneros. É um termo de dominação patriarcal, enaltecendo os valores constituídos como ‘masculinos’ e atribuindo às mulheres posição de subordinação e inferioridade.
Nessa relação de dominação, o sexo masculino se perpetua como o epicentro, tornando-o observador e participante ativo das ações sociais, diferente das situações vivenciadas pelas mulheres e meninas, que são sempre vistas pelos olhos do estereótipo e padrões pré-definidos pela sociedade. Nas escolas essa discriminação não é diferente, pois para Muñoz e Guerreiro (2006), os padrões ‘machistas’ passam de geração em geração, estando sempre vivos nas relações humanas.
Para Auad (2006), o perfil feminino aceito e esperado pela sociedade está vinculado à fragilidade, subserviência, organização e passividade, enquanto que ao masculino espera-se um comportamento agressivo, que demonstre coragem e força. Esses perfis estão presentes em toda a sociedade, sendo vistos, inclusive, em ambientes familiares, onde cabe às meninas o cuidado com os afazeres domésticos e criação dos próprios irmãos, reforçando o estereótipo de que as meninas não podem escolher carreiras que envolvam cálculos, ciência, interferindo diretamente no desenvolvimento das habilidades e potencialidades delas, que passam a viver na invisibilidade desde muito cedo.
Quando abordamos o termo ‘estereótipo’ estamos nos referindo ao conjunto de crenças e opiniões que adquirimos durante nossa vida e que distorcem e/ou generalizam características, atributos e comportamentos de determinado grupo social, controlando as expectativas e ignorando as particularidades e potencialidades de cada um.
O estereótipo de gênero é tão arraigado em nossa sociedade e as meninas e mulheres são tão desvalorizadas e desrespeitadas, que a Organização das Nações Unidas (ONU, 2015) propôs um pacto global em prol do desenvolvimento sustentável, com o objetivo de garantir desenvolvimento humano e atendimento às necessidades básicas ao cidadão. Nesse contexto, criou-se a Agenda 2030, com 169 metas que devem ser cumpridas no período de 2015-2030. De acordo com Moreira (2019),
tal proposta envolve uma diversidade de campos de atuação, que se configuram entre erradicação da pobreza e da fome; saúde e bem-estar; educação; igualdade de gênero; acesso à água potável e saneamento; energia limpa; trabalho decente; redução das desigualdades; sustentabilidade da vida; inovações em infraestrutura; consumo responsável; cidades saudáveis; responsabilidade climática; redução das desigualdades; instituições eficazes; e paz social (p. 23).
Nesse conjunto, o ODS 5 (ONU, 2015), intitulada Igualdade de Gênero tem como objetivo alcançar a igualdade de gênero e empoderar todas as mulheres e meninas. Baseando-se nos dados da ONU (2015),
o sexo feminino representa a metade da população mundial, o que significa a metade do potencial humano mundial. Se conseguíssemos melhorar a qualidade de vida e uma igualdade de gênero real, teríamos vários benefícios que repercutiriam globalmente em toda a sociedade (p. 9).
Os desafios na identificação das AH/SD e a formação de professores
No ambiente escolar é possível encontramos a prática de uma educação que diferencia o que é considerado apropriado para as meninas e o que é destinado aos meninos, determinando o comportamento que cada indivíduo deve ter a partir do seu gênero, seja feminino ou masculino, reproduzindo ações preconceituosas, como afirma Aquino (1998):
O ambiente escolar pode reproduzir imagens negativas e preconceituosas, por exemplo, quando professores relacionam o rendimento de suas alunas ao esforço e ao bom comportamento, ou quando as tratam apenas como esforçadas e quase nunca como potencialmente brilhantes, capazes de ousadia e lideranças. O mesmo pode ocorrer com os alunos quando estes não correspondem a um modelo predeterminado. (Aquino, 1998, pp. 102-103).
Os julgamentos de valor e o discurso dos professores são permeados por estereótipos tradicionais, nos quais os educadores tendem a identificar aquilo que antecipam encontrar. Para Ogeda et al. (2017), existe uma inclinação para acreditar que as meninas possuem características como estabilidade, organização, diligência, responsabilidade e maturidade, sendo vistas como menos aptas para disciplinas científicas e técnicas, enquanto demonstram maior interesse por literatura ou temas domésticos. Como resultado, os educadores agem de maneira diferenciada; em geral, as meninas recebem menos atenção do que os meninos, especialmente nas aulas de ciências e matemática (Ogeda et al. 2017).
De acordo com Renzulli (2002), a escola é o lugar em que os (as) alunos (as) devem ter liberdade para expressar e desenvolver suas potencialidades com atividades que despertam interesse e envolvimento, para escapar do tédio em relação ao ambiente escolar. Porém, a organização escolar brasileira atende seus (suas) alunos (as) em uma perspectiva homogeneizada, com um formato engessado, especialmente em relação ao comportamento dos (das) alunos (as), prejudicando sua construção do conhecimento (Faust, 2020, p. 48).
Nas escolas, os estereótipos de gênero dificultam e até impedem que meninas com AH/SD desenvolvam seu potencial, segundo Neumann (2018), perpetuando crenças e valores que colocam as meninas em desvantagens, em situação de desigualdade de gênero sinalizada pela diferença de oportunidades, inclusive de receber um atendimento adequado na Sala de Recursos Multifuncionais[5].
Reis (2008) afirma que fechar os olhos para a questão de gênero nas escolas é considerado omissão e que “a reversão dos vieses de gênero no contexto educacional depende da atenção dispensada às diferenças de gênero nas complexas relações, sejam estas sociais ou educacionais, que envolvam o processo ensino-aprendizagem”. (Reis, 2008, p. 48)
A PNEEPEI (Brasil, 2008) apresenta inúmeros objetivos, dentre eles
[...] assegurar a inclusão escolar de alunos com deficiência, transtornos globais do desenvolvimento e altas habilidades/superdotação, orientando os sistemas de ensino para garantir: acesso ao ensino regular, com participação, aprendizagem e continuidade nos níveis mais elevados do ensino; transversalidade da modalidade de educação especial desde a educação infantil até a educação superior; oferta do atendimento educacional especializado; formação de professores para o atendimento educacional especializado e demais profissionais da educação para a inclusão; participação da família e da comunidade; acessibilidade arquitetônica, nos transportes, nos mobiliários, nas comunicações e informação; e articulação intersetorial na implementação das políticas públicas. (p.14)
Para que esses objetivos possam ser alcançados é necessário que haja articulação entre o professor de sala de aula regular com o professor especialista, pois, segudo Rech e Negrini (2019), é o professor do AEE que
[...] identifica, elabora e organiza recursos pedagógicos e de acessibilidade que eliminem as barreiras para a plena participação dos alunos, considerando as suas necessidades específicas. As atividades desenvolvidas no atendimento educacional especializado diferenciam-se daquelas realizadas na sala de aula comum, não sendo substitutivas à escolarização. Esse atendimento complementa e/ou suplementa a formação dos alunos com vistas à autonomia e independência na escola e fora dela. (p. 487)
Nessa parceria entre professores, o plano individualizado do (a) aluno (a) é elaborado, com a articulação de objetivos de aprendizagens que devem estar relacionados com os que estão sendo desenvolvidos com os demais colegas de sala (Rech & Negrini, 2019), e que no AEE, possa ser realizada a suplementação necessária para os (as) alunos (as) com AH/SD.
Todavia, identificar o (a) aluno (a) com AH/SD é uma tarefa complexa e que necessita de tempo, pois o processo de identificação envolve um conjunto de práticas e atores. Os pais são as pessoas que mais conhecem o desenvolvimento, os interesses, habilidades e necessidades de seus (suas) filhos (a), podendo contribuir com informações importantes para o processo de identificação das AH/SD. Os professores, por sua vez, se encontram em estreito convívio com seus (suas) alunos (as), conhecendo suas necessidades e habilidades relacionadas a área acadêmica e que têm a possibilidade de conhecê-los (las) com profundidade em outros aspectos como relações sociais, emocionais, expectativas e frustrações, uma vez que o período de convivência é contínuo e integral.
Assim, de acordo com a PNEEPEI (Brasil, 2008) e a Nota Técnica nº 11 (Brasil, 2010), todos os/as alunos (as) com AH/SD deverão ser identificados/as, no contexto escolar, em qualquer nível e modalidade de ensino e ter acesso ao atendimento educacional especializado na escola, desde a educação infantil até o ensino superior.
A identificação das necessidades específicas dos/das alunos (as) com AH/SD deve ser realizada como parte do Atendimento Educacional Especializado, por docentes formados para isso. No entanto, no contexto escolar, além da barreira de gênero que já discutimos nesse capítulo, esbarramos com a falta de formação e de profissionais qualificados para realizar essa identificação dos/das alunos (as) com AH/SD.
Freitas e Rech (2015 como citado em Rech & Negrini, 2019) destacam a importância da formação de professores para a identificação de alunos (as) com AH/SD, ao afirmarem que
a formação de professores, inicial ou continuada, é um dos fatores decisivos para que o professor de classe comum saiba reconhecer as necessidades educacionais que os alunos com AH/SD apresentam. Logo, a partir do momento que o professor reconhecer tais necessidades, poderá organizar sua proposta pedagógica pautada também nos interesses do aluno com AH/SD (p. 491).
As autoras sinalizam a necessidade de formação de professores de sala regular, corroborando a ideia de que eles são os primeiros, juntamente com as famílias, a identificarem indicadores de AH/SD em seus (suas) alunos (as), para então serem encaminhados (as) para o AEE e a partir daí, iniciar o processo de identificação com instrumentos reconhecidos e validados.
A formação de professores, além de contribuir para o processo de identificação de indicadores de alunos (as) com AH/SD, é fonte de conhecimento que será aliada para a quebra de paradigmas e preconceito do próprio professor em relação aos (às) alunos (as) com AH/SD, uma vez que este não reconhece a possibilidade de ter algum (alguma) aluno (a) com AH/SD em escola pública, justificando por se tratar de uma clientela muito pobre e aparentemente descompromissada com a educação[6]. E, essa situação se torna mais agravante ao perguntarmos a possibilidade desse professor ter observado alguma menina com AH/SD; a negativa vem acompanhada por um riso irônico.
Além de todas as barreiras enfrentadas por um (uma) aluno (a) com AH/SD é lamentável saber que, àquele que poderia ser um grande aliado em seu desenvolvimento, é o primeiro a excluí-lo da possibilidade de evolução de suas habilidades e potencialidades devido à preconceitos particulares.
O processo de identificação das AH/SD no contexto escolar
No processo de identificação de AH/SD, segundo Guimarães e Ourofino (2007) são utilizados instrumentos como testes psicométricos, escalas de características, questionários, observação direta e entrevistas com familiares e professores (Guimarães & Ourofino, 2007, p. 55).
Renzulli (2004) complementa mencionado que a avalição precisa transcender as habilidades refletidas nos testes de inteligência, enfatizando a importância da observação do desempenho e das habilidades quando a criança está envolvida na realização de alguma tarefa. Esta observação também é importante para a avaliação da criatividade, podendo ser feita por meio de análise de seus produtos criativos (Alencar & Fleith, 2001, p. 55).
Para a avaliação de alunos (as) que frequentem alguma modalidade educacional, a identificação acontece no AEE, por um período de quatro a doze meses (Freitas e Pérez, 2012, p. 35), seguindo etapas de aplicação de instrumentos e atividades sugeridas a partir da construção do portfólio do talento total[7], realização de projetos de pesquisa[8] e atividades de enriquecimento[9] (Guimarães & Ourofino, 2007, p. 57).
Em relação ao teste psicométrico, Freitas e Pérez (2012) sinalizam que este é uma possibilidade de avaliação que requer grande investimento financeiro por parte das famílias, o que se torna “praticamente inviável devido às características sistêmicas da educação brasileira [...]. Uma alternativa de identificação de alunos com AH/SD poderia utilizar instrumentos mais simples, já validados para a nossa realidade, de cunho educacional...”. (Freitas & Pérez, 2012, p. 72)
A identificação dos (das) alunos (as) com AH/SD precisa ser compreendida como a descoberta das necessidades educacionais de cada um com esta condição, em qualquer área do conhecimento, não sendo exclusivamente nas disciplinas escolares tradicionais. Bendelman e Pérez (2016) sinalizam que “essa identificação não tem o objetivo de rotular, mas é necessária para organizar uma atenção educacional específica e também deve ocorrer naquele contexto e ser realizada por especialistas e professores, todos devidamente treinados para esse fim”. (Bendelman & Pérez, 2016, p. 42)
Conforme evidenciam as autoras supracitadas, o processo de identificação deve transcorrer em um ambiente apropriado, sob a orientação de especialistas e professores devidamente capacitados para essa finalidade, ou seja, na Sala de Recursos Multifuncionais, com a professora do AEE, tendo como objetivo garantir que a identificação seja conduzida de maneira diligente e por profissionais qualificados, priorizando o benefício educacional do (a) aluno (a), em vez de impor rótulos limitadores (Bendelman & Pérez, 2016).
Após o processo de identificação do (a) aluno (a) com AH/SD, o passo seguinte é desenvolver as habilidades através de atividades de enriquecimento curricular, oferecendo ao (à) aluno (a) experiências diferentes das ofertadas pelo currículo na sala regular.
De acordo com Alencar e Fleith (2001), as atividades de enriquecimento
para alguns implica em completar em menor tempo o conteúdo proposto, permitindo, assim, a inclusão de novas unidades de estudo. Para outros ele implica uma investigação mais ampla a respeito dos tópicos que estão sendo ensinados, utilizando o aluno um maior número de fontes de informação para dominar e conhecer determinada matéria. Para outros, o enriquecimento consiste em solicitar ao aluno o desenvolvimento de projetos originais em determinada área de conhecimento. Ele pode ser levado a efeito tanto na própria sala de aula como através de atividades extracurriculares. (Alencar & Fleith, 2001, p. 133)
Sanches et al. (1998) acreditam que as atividades de enriquecimento são as que mais oferecem possibilidades para o desenvolvimento das potencialidades e habilidades, pois atendem a especificidades de cada aluno (a) com AH/SD. No entanto, alertam para que o planejamento seja gradativo nas atividades afim de evitar sobrecarga nos (nas) alunos (as).
Considerações Finais
Meninas com AH/SD enfrentam uma série de barreiras devido ao preconceito e estereótipos de gênero, despertando nelas a crença de que, para serem aceitas por seus pares, precisam ocultar suas habilidades. Esse comportamento, a longo prazo, poderá trazer comportamentos como isolamento, baixa autoestima, conflito entre talento e feminilidade, entre outros.
Nesse universo, quando falamos da identificação de meninas com AH/SD estamos abrangendo algo muito maior do que apenas o processo de comprovar indicadores de AH/SD. Estamos nos referindo como aspectos sociais que não concebem apenas inteligência e sucesso acadêmico dentro do espectro de gênero feminino, contribuindo para a reprodução de desigualdades de gênero no âmbito social e educacional.
Para refletirmos sobre a identificação de meninas com AH/SD é importante questionarmos como os discursos de gênero contribuem para a normalização de certos padrões de desempenho, reconhecendo e desafiando os estereótipos que moldam nossas concepções de inteligência e sucesso acadêmico, bem como garantindo que os processos de identificação sejam sensíveis à diversidade de habilidades e talentos das meninas. Com o reconhecimento das barreiras e a superação das mesmas será possível, independente do gênero, promover um espaço de isonomia e desenvolvimento dos (das) alunos (as).
Para ultrapassarmos os limites do preconceito e da desigualdade de gênero, uma das possibilidades possível e viável é a formação continuada dos profissionais de educação, possibilitando espaços de trocas e conhecimento, onde todos aprendem juntos.
Para que isso ocorra nas escolas, há urgência na formação de professores, pois a identificação do (a) aluno (a) com AH/SD é um processo multidimensional e dinâmico, envolvendo toda a equipe escolar e que precisa considerar o indivíduo e suas características dentro dos ambientes em que está inserido, uma vez que, para Renzulli (2012), não existe apenas um critério que determine a superdotação e, neste contexto, não existe uma única forma de se identificar um (a) aluno (a) superdotado (a) ou um instrumento único que dê conta de tantas especificidades.
Nesse sentido, a formação de professores, desde sua base assim como na formação em exercício, é fator determinante para que os mesmos se apropriem de conhecimentos adequados sobre a temática, desvencilhando da ignorância, preconceito e mitos que interferem e dificultam o desenvolvimento desse (dessa) aluno (a), afim de realizar a identificação de indicadores das AH/SD e encaminhamentos junto ao profissional do atendimento educacional especializado.
Acreditamos que somente através do conhecimento correto sobre o que seja ser uma pessoa com AH/SD é que conseguiremos oportunizar o atendimento educacional especializado adequado para os (as) alunos (as) que apresentem essa condição, possibilitando voos cada vez mais altos, livres do preconceito e estereótipos de gênero.
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[1] Mestranda do programa de Mestrado em Educação (UDE), especialista em Educação Especial, professora da Rede Municipal de Natal/RN, Brasil. E-mail: cleidecgiovannetti@gmail.com. ORCID: 0009-0004-7955-5531
[2] As inteligências propostas por Gardner (1983) são: Musical, Espacial, Lógico-Matemática, Linguística, Corporal-cinestésica, Intrapessoal, Naturalista, Interpessoal e Existencialista.
[3] A teoria de Goleman (1995) permitiu que as pessoas tivessem um novo olhar para as emoções, permitindo o desenvolvimento da habilidade de identificar, avaliar e controlá-la.
[4] Abreviação de Quociente de Inteligência, um teste desenvolvido por Binet-Simon (1905) para mensurar a inteligência de uma pessoa em relação à média da população.
[5] Programa de Atendimento Educacional Especializado – AEE, prestado de forma complementar ou suplementar aos estudantes com deficiência, transtornos globais do desenvolvimento, altas habilidades/superdotação matriculados em classes comuns do ensino regular, assegurando-lhes condições de acesso, participação e aprendizagem (Nota Técnica nº 11, 2010)
[6] Como professora do AEE, costumo ouvir com frequência falas desse tipo.
[7] Inventário de dados e informações pessoais, de interesses, estilos de aprendizagem e amostras de produção.
[8] Partindo do interesse do estudante, estruturar um projeto de pesquisa com o objetivo de divulgação de um produto que apresente soluções para a problemática investigada.
[9] Jogos manuais e tecnológicos de desafios emprego de recursos tecnológicos para desenvolver ideias e solucionar problemas utilização de recursos, técnicas e estratégias para desenvolver a criatividade, de acordo com a área de interesse.