Aprobado: 03/11/2022
Luciana Moraes Soares[1]
Resumo
O presente trabalho é fruto dos estudos realizados na disciplina Ética, Democracia e Educação do programa de Mestrado em Educação da Universidad de la Empresa (UDE- Montevideo), a partir da análise das obras Escola e democracia e Educar na era planetária, dos autores Saviani (2012) e Morin (2003) respectivamente, bem como da interlocução entre os teóricos Galeano (2020), Touraine (2011), Calligaris (2021), Barbosa (2005; 2011) e Sibilia (2012). Para a realização deste trabalho, foram utilizados referenciais teóricos em livros e vídeos, disponíveis no Youtube. Este trabalho visa socializar algumas reflexões quanto ao ensino da arte sob a ótica de uma disciplina de resistência problematizadora da contemporaneidade, no contexto de pandemia. Apresenta também alguns desafios e inquietações impostos pela pandemia, sendo que a pandemia nesse cenário, pode ter proporcionado a quebra de paradigma em relação a utilização das tecnologias nos planejamentos didáticos, ao mesmo tempo, em que se configura como uma proposta excludente.
Palavras-chave: educação, ensino de arte, tecnologia, pandemia
Abstract
The present work is the result of studies carried out in the Ethics, Democracy and Education discipline of the Master's program in Education at the Universidad de la Empresa (UDE-Montevideo), from the analysis of the works Escola e democracia and Educar na era planetária, by the authors Saviani (2012) and Morin (2003) respectively, as well as the dialogue between theorists Galeano (2020), Touraine (2011), Calligaris (2021), Barbosa (2005; 2011) and Sibilia (2012). To carry out this work, theoretical references in books and videos, available on Youtube, were used. This work aims to socialize some reflections on the teaching of art from the perspective of a discipline of resistance that problematizes contemporaneity, in the context of a pandemic. It also presents some challenges and concerns imposed by the pandemic, and the pandemic in this scenario may have provided a paradigm shift in relation to the use of technologies in educational planning, at the same time, in which it configures itself as an excluding proposal.
Keywords: education; art education; technology; pandemic
Introdução
Este trabalho está embasado principalmente nas obras Escola e democracia e Educar na era planetária, dos autores Saviani (2012) e Morin (2003), respectivamente, sendo que a partir dessa base sólida, se propôs a interlocução com outros teóricos igualmente intrigantes como, por exemplo, Galeano (2020), Touraine (2011), Calligaris (2021), Barbosa (2005; 2011) e Sibilia (2012).
A pandemia trouxe mudanças significativas para o mundo. A necessidade do isolamento social impôs outras formas de viver e de se relacionar na sociedade. Percebemos que a contemporaneidade nos provoca, assim como a arte, a pensar criticamente sobre o cotidiano, proporcionando experiências (nem sempre agradáveis) de uma realidade digital, na qual tudo se torna virtual, inclusive a educação, as redes se tornaram paredes (Sibilia, 2012).
Com a implantação do ensino remoto, houve a inserção efetiva da tecnologia no ambiente escolar, aliás, pode-se dizer que o ambiente escolar, tornou-se virtual. Com isso, surge uma nova maneira de desenvolver o trabalho docente, da mesma forma, os estudantes precisaram encontrar novas formas de estudar. Neste sentido, as alterações advindas da pandemia podem ter proporcionado quebra de paradigmas em relação a utilização da tecnologia para o processo de ensino e aprendizagem.
Para refletirmos sobre as transformações ocorridas na educação no contexto de pandemia, utilizaremos o ensino da arte como ponto de partida, pois trata-se de uma área de conhecimento que permite um olhar poético sobre os acontecimentos do mundo, e também por estar num conjunto de disciplinas resistentes às imposições de um sistema educativo norteado pela economia.
Ainda no que tange ao ensino da arte, é importante destacar, que o texto faz referência a apenas uma das quatro linguagens artísticas, nesse caso aborda o ensino das artes visuais. Já em relação a palavra tecnologia, o conceito utilizado aqui diz respeito aos instrumentos e ferramentas com base digital e que utilizam a internet como meio de divulgação. Esse conceito vem da definição das chamadas TDIC (tecnologias de informação e comunicação), que já são recorrentes na área educacional, sendo que no contexto de pandemia novos termos e definições passaram a integrar o rol de nomenclaturas que integram esse conjunto, como por exemplo: ensino remoto, aula híbrida, sala de aula invertida, plataformas, entre outros.
Não será feita uma análise aprofundada desses termos; a intenção é apenas provocar uma aproximação sobre a gama de possibilidades que os instrumentos tecnológicos oferecem ao âmbito educacional, partindo do princípio democrático, ou seja, sem querer impor esse ou aquele instrumento, apenas abrir espaço para uma possível discussão a respeito de questões latentes no cotidiano escolar.
O texto está estruturado em dois momentos. Sendo assim, inicialmente será necessário contextualizar histórica e socialmente o ensino da arte no Brasil através de um viés metodológico, de forma breve, pois não é objetivo deste trabalho um aprofundamento sobre as metodologias utilizadas na disciplina das artes visuais. Num segundo momento abordaremos alguns desafios e inquietações impostos pela pandemia, a partir dos conceitos apresentados por Morin (2003) e Saviani (2012), perpassando algumas reflexões encontradas em Galeano (2020), Touraine (2011) e Calligaris (2021), bem como em Barbosa (2005; 2011) e Sibilia (2012).
Contextualização quanto ao ensino da arte
O ensino da arte no Brasil está alicerçado na Proposta Triangular sistematizada pela educadora Ana Mae Barbosa na década de 80, situada nos três pilares do fazer, fruir e contextualizar obras de arte, essa proposta possibilita uma prática voltada para o desenvolvimento estético do aluno, Barbosa (2005). Essas dimensões foram ampliadas com o advento da Base Nacional Comum Curricular - BNCC (2017), passando a incluir estesia, reflexão e expressão, ampliando com isso, a gama de possibilidades para o trabalho em sala de aula.
Com o advento da união entre arte e tecnologia Barbosa (2011) projetou a expressão “arte tecnologizada”, para definição do que se refere principalmente à arte contemporânea, construída muitas vezes de forma híbrida, como por exemplo, a videoarte. Seguindo na linha da arte-educação nos deparamos com as colocações de Hernández (2007) quando argumenta que “ensinar é um ato performático”, ainda se destaca que:
O professor é um catalisador que cuida para que cada estudante esteja cada vez mais conectado, para que seja, cada vez mais, um participante ativo nessa relação que visa à aprendizagem. Neste sentido, o professor é mais um “DJ” do que um diretor de orquestra. São importantes essas colocações porque a educação está em crise. Crise esta que poderia ser resumida pelo fato de que muitos estudantes apresentam resistência à maneira como recebem o ensino na escola e pelo fato de que muitos professores não querem aprender outro modo de ensinar diferente do que sempre utilizaram. (Hernández, 2007, p. 16).
Na tentativa de superação dessa crise, vivemos momentos históricos na educação como a Escola Nova, sendo que nesta perspectiva segundo Saviani (2015, p. 9), “o professor agiria como um estimulador e orientador da aprendizagem cuja iniciativa principal caberia aos próprios alunos”.
Nos deparamos então, com as reflexões no sentido das chamadas metodologias ativas, centrando o processo ensino e aprendizagem no estudante (Moran, 2020). Nessa concepção, o professor tem papel importante no planejamento e gestão das atividades, as quais devem estar articuladas com a realidade dos estudantes, mas não interfere no desenvolvimento propriamente dito, sendo que os estudantes devem assumir o controle. Sob essa perspectiva, podemos perceber que o papel do professor passa a ser de mediação no cenário educacional, estimulando o desenvolvimento do protagonismo estudantil através de diferentes ferramentas e instrumentos, como por exemplo, a tecnologia disponível.
Considerando a contemporaneidade, com os avanços tecnológicos e a diversidade que permeia a sociedade, adentramos no conceito de era planetária (Morin, 2003). Para melhor entendimento, é importante esclarecer que esse conceito é mais abrangente do que o conceito de globalização, diz respeito ao planeta no qual habitamos, perpassando todas as dimensões da vida humana.
Nas palavras do autor,
A Terra não é só o lugar onde se espraia a globalização, mas uma totalidade complexa física/biológica/antropológica. Em outras palavras, é preciso compreender a vida como consequência da história da Terra e a humanidade como consequência da história da vida na terra. A relação do ser humano com a natureza e o planeta não pode ser concebida de um modo redutor, nem separado como se depreende da noção de globalização, porque a Terra não é a soma de elementos disjuntos: o planeta físico, mais a biosfera, mais a humanidade; a relação entre a Terra e a humanidade deve ser concebida como uma entidade planetária e biosférica (Morin, 2003, p. 63-64).
Portanto, podemos entender que a educação faz parte dessa entidade planetária, sendo talvez um dos elementos mais importantes, de tal forma que é imprescindível refletir sobre ela a partir do nosso próprio fazer docente. O entrelaçamento entre arte e tecnologia pode ser um fator positivo para alavancar essa reflexão, alicerçada na democracia que deve permear a educação, possibilitando o desenvolvido desse entendimento planetário sobre a vida humana.
Nesse sentido, o autor revela que a educação além de possuir uma função social, possui uma missão. Missão essa que perpassa os conteúdos de sala de aula, mas vai muito além, diz respeito à construção de cidadão. Para tanto, é necessário que todos os envolvidos nesse processo conheçam o conceito de cidadão, pois não basta estar no mundo, é urgente agir (no) e pelo mundo.
Assim, segundo Morin (2003),
A missão da educação para era planetária é fortalecer as condições de possibilidade da emergência de uma sociedade-mundo composta por cidadãos protagonistas, conscientes e criticamente comprometidos com a construção de uma civilização planetária (Morin, 2003, p. 98).
Nesse viés, como poderá a educação forjar tal cidadão? Que seja ao mesmo tempo protagonista da sua vida, consciente dos acontecimentos nos níveis macro, meso e micropolítico e criticamente comprometido com a civilização?
Bem, o currículo escolar deveria proporcionar condições e discussões para essas demandas, mas na prática o que normalmente encontramos são professores lutando para atender a burocracia imposta pelos sistemas de ensino, pois a bem da verdade, o engessamento atua em prol de sobrecarregar os profissionais da educação para que permaneça o status quo.
Pois, conforme Saviani (2012), “nesse contexto, a educação é entendida como inteiramente dependente da estrutura social geradora de marginalidade, cumprindo aí a função de reforçar a dominação e legitimar a marginalização” (Saviani, 2012 p. 4).
Nessa relação simbiótica entre educação e sociedade, reforça-se a existência dos ninguéns (Galeano, 2020). Já não basta falar sobre métodos e metodologias, é mister a implementação eficaz de disciplinas que perpassem as questões planetárias (Morin, 2003).
Nessa concepção, encontra-se a disciplina de Arte, a qual, embora seja recente no currículo escolar, frequentemente enfrenta tentativas de supressão, como as alterações apontadas pela Medida Provisória 746 (Brasil, 2016). Configura-se, portanto, como uma disciplina de resistência.
A arte abarca a cultura de um povo, através dela conhecemos a história, valorizamos o intangível e refletimos sobre o mundo. O ensino de Arte enquanto disciplina na Educação Básica, especificamente no Ensino Fundamental, está dividido nas quatro linguagens: artes visuais, teatro, dança e música, sendo que neste ensaio o foco de debate será a primeira linguagem.
Na perspectiva das artes visuais, encontramos o que denominamos arte contemporânea, com toda gama de produções dialógicas e tecnológicas.
A temática arte e tecnologia e seus desdobramentos vem sendo amplamente estudadas nos últimos anos, principalmente a partir da década de 80, quando muitos pesquisadores passaram a buscar informações e soluções para inquietações nessas áreas, Carvalho e Nunes (2010) apontam que:
Tecnologia é mais uma possibilidade de ação educacional. Nesta era em que os estudantes criam páginas na web, animações, gráficos, vídeos, é visível a força da Arte e Tecnologia convertendo-se em um novo meio de linguagem. As novas tecnologias digitais enriquecem o desenvolvimento da capacidade de pensar, criar e participar de uma sociedade atual complexa que está em construção. (Carvalho; Nunes, 2010, p. 1).
Principalmente no que tange às TDICs (tecnologias digitais de informação e comunicação), é cada vez maior a adesão pela utilização de ferramentas diferenciadas na sala de aula.
Segundo Morin (2003),
De mãos dadas com a ideologia do progresso, com o impulso e a aceleração que produz a infra-estrutura das tecnologias das TICs (Tecnologias de Informação e Comunicação), a economia se mundializa até se transformar num todo interdependente; sua dinâmica alimenta a hélice da primeira globalização até globalizar a presença cega e transbordante do quadrimotor: ciência, técnica, indústria e interesse econômico (Morin, 2003, p. 83).
Nesse sentido, precisamos estar atentos para a devida utilização da tecnologia para o processo criativo dos estudantes, ou poderemos recair (sem percebermos) nas teorias tecnicistas, conforme Saviani (2012), a organização do processo converte-se na garantia da eficiência, compensando e corrigindo as deficiências do professor e maximizando os efeitos da sua intervenção; “Marginalizado será o incompetente (no sentido técnico da palavra), isto é, o ineficiente e improdutivo” (Saviani, 2012, p. 13).
Essas considerações dialogam com Sibilia (2012), pois de fato a instituição escolar no modelo como conhecemos precisa de atualização, e acredita-se que uma possibilidade é a interlocução entre as “redes e as paredes”, considerando sempre a criticidade das práticas.
Podemos compreender que existe um paradoxo no que tange a utilização da tecnologia na educação. Em relação ao ensino das artes visuais, a tecnologia se restringe ao meio de apresentação de obras.
Abordaremos na sequência alguns desafios e inquietações advindas com a pandemia, seguindo no viés das relações entre arte e tecnologia.
Inquietações e desafios impostos pela pandemia
Muitos foram (e ainda estão sendo) os desafios enfrentados pelos docentes no contexto da pandemia, desde sobrecarga de trabalho até doenças psicossomáticas. Neste cenário de dilemas destacam-se as docentes mulheres que além da carga horária de trabalho remunerado passaram a exercer uma carga horária maior de trabalho não remunerado, como cuidado com os filhos e com os trabalhos domésticos, segundo informativo CEPAL (2020), na América Latina o corpo docente é formado prioritariamente por mulheres, sendo que no ensino primário ou básico elas representam 78,2 % do total de profissionais e no ensino secundário ou médio 57,8%.
Soma-se ainda, a necessidade de formação e domínio das ferramentas necessárias para o desenvolvimento das aulas remotas, muitos profissionais da educação não estavam (e ainda não estão) alfabetizados digitalmente, na última pesquisa realizada na América Latina sobre ensino e aprendizagem, constatou-se que 64% dos professores brasileiros haviam recebido formação em ferramentas digitais para educação OCDE (2019) apud CEPAL (2020). Com a urgência pelas aulas online, os estados brasileiros buscaram ferramentas e plataformas digitais para tentar suprir a demanda, este foi o caso do Rio Grande do Sul - RS, que desde abril de 2020 utiliza a plataforma Google for Education, como meio para disponibilização das aulas. Mesmo com a utilização da referida plataforma, o alcance aos estudantes chega a 82%, segundo informação da Secretaria de Educação SEDUC-RS (2021), este foi o maior índice de acesso à plataforma entre os 26 estados e o Distrito Federal.
As escolas e principalmente os (as) professores, recorreram a diversas maneiras para atenderem os estudantes. Basta uma rápida pesquisa na internet para encontrarmos relatos neste sentido, como: produção de materiais físicos (muitas vezes custeados com recursos próprios), visitas nas residências dos estudantes, seleção e envio de apostilas, indicação de tarefas em páginas específicas da internet, contato telefônico, acompanhamento pelas redes sociais, apenas para citar alguns exemplos.
Além dessas questões, as três forças não sociais, constituídas pela ecologia, individualismo e o novo feminismo, conforme Touraine (2011), tiveram, por assim dizer, destaque mundial. Obviamente não se trata de uma perspectiva positiva, pelo contrário, a questão da ecologia como bem apontado por Touraine (2011) trata da sobrevivência do planeta, ou seja, é um tema de extrema importância. Os estudos sobre as mudanças climáticas, desmatamentos e aquecimento global não são muito animadores e por isso precisam de dedicação e ação.
Em relação a esse tema, Morin (2003) argumenta:
A crise ambiental e sua articulação retroalimentadora com a pobreza, a violência organizada, e as migrações compulsivas mostram claramente que o fenômeno capital de nosso tempo, denominado “globalização”, é um fenômeno que contém ingredientes autodestrutivos, mas ao mesmo tempo, contém também os ingredientes que podem mobilizar a humanidade para a busca de soluções planetárias baseadas na necessidade de uma antropolítica (Morin, 2003, p. 88).
Já em relação ao que denomina novo feminismo, Touraine (2011) infere que é uma força adormecida, uma vez que não está em evidência, sendo percebida na verdade, pela exclusão da mulher de alguns espaços, como a política por exemplo.
Em relação ao individualismo, além de ser um traço de personalidade, pode ser entendido também como uma escolha. Uma escolha feita conscientemente pelo indivíduo, no sentido de se preocupar somente com suas próprias necessidades e desejos, sem considerar os demais. Aqui, podemos citar os diversos posicionamentos contra o isolamento social e ao uso de máscara, bem como, à falta de empatia e respeito pelo trabalho docente realizado no modelo remoto, prezando apenas pela manutenção da engrenagem financeira.
Talvez um dos maiores desafios enfrentados pelos docentes, tenha sido a utilização da tecnologia. Rapidamente a escola se tornou digital, tanto os professores quanto as famílias precisaram se adaptar a uma nova realidade.
Com a imposição da pandemia, experimentamos na prática o conceito de era planetária apresentado por Morin (2003), desta forma:
A ciência, a técnica e o desenvolvimento econômico, que pareciam ser o motor de um progresso seguro, revelam suas ambivalências. Enquanto a noção de progresso se tornou incerta, as redes de comunicação em tempo real permitem revelar e observar os males de nossa civilização, ali onde resultados positivos eram esperados. Dessa forma, os problemas considerados periféricos transformaram-se em problemas centrais, problemas que eram chamados de “privados” ou “existenciais” tornaram-se problemas políticos, e os problemas não-econômicos tiveram, de repente, de buscar uma solução econômica (Morin, 2003, p. 84).
Os problemas políticos e econômicos foram sentidos em todos os cantos do planeta, de tal forma que os ninguéns (Galeano, 2020) foram, sem dúvida, os mais afetados pela pandemia, destacadamente aqueles que não possuíam acesso à tecnologia e as redes de comunicação.
As redes de comunicação foram acessadas incessantemente diuturnamente, revelando verdades e inverdades. Converteu-se em um novo meio de trabalho para milhares de pessoas em diferentes tipos de nomenclaturas como home working, teletrabalho, trabalho remoto, entre outros. Independente do nome que tenha recebido, na prática o que acarretou foi uma séria dificuldade em estabelecer limites entre trabalho e vida privada. De repente a vida privada se tornou pública e a noção de tempo e espaço foi alterada.
No campo educacional não foi diferente, subitamente, as aulas passaram a acontecer em ambiente online, professores aprenderam técnicas de produção de conteúdo digital, aumentando consideravelmente o tempo de dedicação ao trabalho.
Sendo assim, a utilização da tecnologia como principal ferramenta para o desenvolvimento das aulas, se apresentou como um desafio e uma inquietação ao mesmo tempo. Desafio, em relação as dificuldades de manejo e domínio técnico das ferramentas. Inquietação em relação à população sem acesso às ferramentas tecnológicas, fazendo com que aumentasse a lacuna entre os mais e os menos favorecidos.
Trazendo novamente as reflexões de Saviani (2012), temos:
Evitemos escorregar para uma posição idealista e voluntarista. Retenhamos da concepção crítico-reprodutivista a importante lição que nos trouxe: a escola é determinada socialmente; a sociedade em que vivemos, fundada no modo de produção capitalista, é dividida em classes com interesses opostos; portanto a escola sofre a determinação do conflito que caracteriza a sociedade (Saviani, 2012, p. 30).
Obviamente, as famílias mais abastadas, tiveram condições de manter ou inclusive melhorar a condição educacional dos seus filhos, enquanto as populações de baixa renda sofreram com dificuldade de acesso a educação, aumentando a vulnerabilidade dessa população.
Justamente nesse momento de incerteza, o país sentiu as transformações ocasionadas pela consolidação de uma política de direita, com isso, houve um enfraquecimento das políticas públicas que visavam atender minimamente a população carente.
O campo de estudos das políticas públicas se constitui como um espaço interdisciplinar, pois são diversas as áreas que interferem e sofrem interferência das ações do Estado nesse âmbito. O enfraquecimento das políticas públicas pôde ser percebido inicialmente nas ações de combate à pandemia, e posteriormente, nas demais áreas como por exemplo, na educação. Essas atitudes autoritárias, revelaram um sistema político nem sempre democrático (Touraine, 2021).
Dentro deste cenário, as áreas mais atingidas, via de regra, são aquelas que instigam a reflexão crítica, as quais são consideradas desnecessárias, obsoletas ou sem aplicação, pois vão na contramão da fabricação de mão de obra técnica para alimentar a máquina da economia.
Pois, segundo Saviani (2012)
A pedagogia por mim denominada ao longo deste texto, na falta de uma expressão mais adequada, de “pedagogia revolucionária”, não é outra coisa senão aquela pedagogia empenhada decididamente em colocar a educação a serviço da referida transformação das relações de produção (Saviani, 2012, p. 76).
Para Morin (2003),
No caso da ação revolucionante, seu objetivo consiste em criar as condições nas quais a humanidade se aperfeiçoe como tal numa sociedade-mundo. Essa nova etapa só poderá ser alcançada revolucionando amplamente as relações entre os homens e a tecnoburocracia, entre os homens e a sociedade, entre os homens e o conhecimento, entre os homens e a natureza (Morin, 2003, p. 101).
A arte em suas manifestações pode ser entendida como parte desse movimento revolucionário na educação. Logicamente caracterizada como um desafio no atual contexto, pois foi uma das áreas atingidas economicamente. Desde o começo da pandemia e a necessidade do isolamento social, os artistas em geral precisaram se reinventar na tentativa de sobreviver à crise. Muitos recorreram a tecnologia, utilizando as redes sociais como espaço de mediação com o público, nesse movimento gerou-se uma nova possibilidade de acesso e participação em eventos de diferentes formatos. Atualmente, sem sair de casa é possível assistir a uma peça de teatro ou participar de uma live musical.
No que tange ao ensino da arte nas escolas de Educação Básica, durante o ensino remoto, foi possível uma maior aproximação com a arte. Principalmente em relação às produções da arte contemporânea, ou arte tecnologizada (Barbosa, 2011).
O desenvolvimento de aulas instigantes que promova a produção de trabalhos digitais se apresenta como uma possibilidade metodológica híbrida, proporcionando novas formas de ver, ouvir, pensar e processar os conceitos deste mundo contemporâneo, uma vez que o estudante passa a ser o agente, o protagonista da ação.
Segundo Saviani (2012, p. 72), trata-se da efetiva incorporação dos instrumentos culturais, transformados agora em elementos ativos de transformação social.
Utilizar ferramentas e materiais que possibilitem um maior engajamento dos estudantes, e consequentemente desenvolver atividades contextualizadas com a contemporaneidade vem ao encontro de umas das bases de apoio aos docentes apontadas pelo informe CEPAL (2020) como prioridade: “apoyo para mantener y profundizar los avances em la inovación metodológica y la implementación de formas alternativas de enseñanza, incorporando uma apertura del currículo hacia lo lúdico y contextualizando la situación vivida” (CEPAL, 2020, p. 13).
Neste sentido, será necessário que tanto o sistema educativo quanto os gestores das escolas participem desse movimento, possibilitando que os esforços realizados durante este período sejam incorporados como melhorias metodológicas e pedagógicas nos currículos, de forma que o desenvolvimento tecnológico adquirido devido à crise sanitária, permaneça no cenário educacional.
Para Morin (2003), é preciso, também, perceber que o desenvolvimento deveria ter como finalidades: viver com compreensão, solidariedade e compaixão. Viver melhor, sem ser explorado, insultado ou desprezado. Isso supõe que, no prosseguimento da hominização, exista necessariamente uma ética do desenvolvimento, sobretudo porque já não há uma promessa e uma certeza absoluta de uma lei de progresso.
Por último, é preciso incluir entre as finalidades precedentes a busca da plenitude e da completude do indivíduo, que se efetiva através da música, da poesia, da mística e das artes em geral (Morin, 2003, p. 105-106).
Tais colocações, vão ao encontro das ideias de Calligaris (2021), quando compara a vida a uma obra de arte.
Assim, “a missão supõe, evidentemente, fé na cultura e fé nas possibilidades do espírito humano. A missão é, portanto, elevada e difícil, porque supõe, simultaneamente, arte, fé e amor” (Morin, 2003, p. 99).
Nesse sentido, talvez seja necessário que os docentes desenvolvam um senso estético, artístico ou poético, com objetivo de cumprir a missão conferida à educação, além de doar sua energia ao trabalho. Porém não basta uma energia mansa, ou agitada (sem rumo), segundo Galeano (2020).
Existe gente de fogo sereno, que nem percebe o vento, e gente de fogo louco, que enche o ar de chispas. Alguns fogos, fogos bobos, não alumiam, nem queimam; mas outros incendeiam a vida com tamanha vontade que é impossível olhar para eles sem pestanejar, e quem chegar perto, pega fogo (Galeano, 2020).
Essa energia precisa ser utilizada na medida certa para contagiar aos demais, de forma que desperte o interesse e motivação no desenvolvimento de um trabalho comprometido em fazer a diferença no mundo, há que se desenvolver aulas de arte voltadas para a reflexão estética e crítica da sociedade na qual estamos inseridos.
Muitos professores de arte reclamam da baixa carga horária destinada à disciplina nos currículos brasileiros, a democracia do sistema educacional impõe limites para determinadas áreas do conhecimento, talvez por receio do que possa acontecer caso os sujeitos envolvidos entendam a importância das suas ações ou talvez por não considerar relevante o desenvolvimento de experiências estéticas.
Considerações finais
A pandemia trouxe duras imposições; mostrou que estamos todos interligados, ultrapassou os limites da escola e exigiu novos meios de trabalho. De certa forma, uma maior utilização das tecnologias digitais de informação e comunicação (TDICS) já era esperada e por que não dizer planejada, porém a velocidade com que passamos a utilizá-las revelou muitas fragilidades em diferentes âmbitos, ao mesmo tempo, possibilitou novas formas de interação e atuação docente, se apresentando, portanto, como um paradoxo.
Cabe ressaltar, que este trabalho teve como objetivo apresentar algumas reflexões quanto ao ensino da arte no contexto de pandemia, no qual, ocorreram mudanças políticas, econômicas e sociais.
No campo específico do ensino de arte, a tecnologia ampliou as possibilidades de experimentação estética. Se, na realidade anterior à pandemia, a tecnologia não era vista com bons olhos, no atual contexto, passou a integrar todos os pilares metodológicos do fazer, fruir e contextualizar a obra de arte (Barbosa, 2005). Por outro lado, a tecnologia também se apresenta como um problema para quem não tem acesso a ela, de modo que a população de baixa renda foi mais uma vez marginalizada, Saviani (2012).
O entrelaçamento entre arte e tecnologia pode ser entendido como uma possibilidade híbrida de produção e reflexão crítica, além de promover a formação digital dos estudantes, uma vez, que serão os principais atores no processo. A utilização da tecnologia para produção artística já foi combatida no passado, atualmente pode ser o meio de acesso, de produção e de fruição de diferentes produções artísticas, possibilitando aos professores e estudantes um novo olhar sobre o papel da arte e da tecnologia na vida contemporânea.
Destaca-se também a necessidade de formação dos professores em relação ao letramento digital, pois muitos docentes não estavam (e ainda não estão) alfabetizados digitalmente, mesmo que algumas ações tenham sido tomadas neste sentido, ainda estamos aquém do ideal. Nesse sentido, percebe-se uma maior fragilidade nas redes públicas mantidas pelo Estado, se compararmos com a rede privada.
Restam ainda, diversas lacunas sem respostas, possivelmente os docentes comprometidos com o processo educativo, se questionam sobre como será a prática docente nos próximos anos. Terá sido em vão toda a aprendizagem adquirida? A tecnologia será banida da sala de aula? Em relação os estudantes que não tiveram condições de acesso, o que acontecerá com eles? Constarão nas estatísticas de aumento da pobreza? E quanto aos estudantes órfãos da pandemia? A escola terá condições de acolhê-los?
Em relação à formação integral do cidadão, a educação encontra aí um grande desafio. Retomamos aqui, a questão feita anteriormente: como poderá a educação forjar tal cidadão? Que seja ao mesmo tempo protagonista da sua vida, consciente dos acontecimentos nos níveis macro, meso e micropolítico e criticamente comprometido com a civilização?
Talvez, possamos encontrar uma resposta possível na interlocução entre as propostas de era planetária (Morin, 2003), vida como obra de arte (Calligaris, 2021) e indivíduo contagiante pela vontade de viver (Galeano 2020), ou seja, enquanto docentes podemos agir como artistas, produzindo uma obra, contagiando aos demais com energia crítica, partindo do princípio que estamos interconectados, que somos todos responsáveis pelas transformações que queremos no mundo.
Referências
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[1] Especialista em Arte (UFPel). Tradutora/Intérprete de Libras (Unintese). Licenciada em Artes Visuais (Uninter). Docente na Rede Pública de Educação de Dom Pedrito -RS.